DIA BRANCO
Luciana Priosta
Naquele sábado o dia vestiu sua roupa de missa. O sol claro, de uma luz aturdi os sentidos. Morno e branco. Cheio de luz que não aquece, não conforta. A gente vai se amolentando e dobrando os joelhos e se jogar o corpo na grama da praça, lá mesmo se morre feliz. Sol frouxo, daqueles que vão azeitando as juntas endurecidas pela aragem da madrugada, no entanto, sem emprestar qualquer calor ao corpo. Nos envolve num desalento que acaba com qualquer propósito. Naquele dia, esse sol branco se instalou num céu muito azul. E todo mundo que saiu à rua sentiu que era um dia de mandriar. Dia claro, mas frio, sem vida, sem firmeza de ânimo. Não sabe que em dias que sol assim está no céu as idéias criam vontade? Sem freios, sem recatos. Num dia dessa qualidade, qualquer cidadão podia ter caído na tentação. Não se trata de lassidão de caráter. Naquele sábado, até santo perderia a compostura.
E se mesmo a vontade mais firme teria sucumbido, que dirá desse pobre diabo, sem eira nem beira. Alguém lhe pôs, até hoje, olhos de comiseração? Recebeu na vida palavra ou sentimento humano? Não. Quem procurou saber se tinha comida que lhe mitigasse a fome? Lã que lhe espantasse o frio? Mulher que lhe aplacasse o ventre? Tem por aí bicho mais bem cuidado. Vai me dizer, já sei, que bicho não precisa de muito: está lá um bom naco de comida, um lugar quente para largar a carcaça. Mas ele também nunca pretendeu muito mais que isso. Um trago, um cigarro talvez? Nem isso. Nunca cheirava a fumo ou bebida. Era reto, silencioso. Nunca existia por inteiro. Mas ficou de olho estalado quando viu as ciganas chegarem na praça. Tanta cor lhe doía a cabeça. Ficou parado assuntando o alarido que acompanhava aquela revoada de panos floridos. Podia ficar dias nessa contemplação, quase sorrindo. Ele nunca existia completamente. Só no tumulto vindo das tendas ciganas é que pareceu estar neste mundo.
Naquela manhã ela saiu pela porta da barraca. Olhou diretamente para aquela luz que enchia o ar como que querendo queimar as retinas. Parecia querer fixar à fogo na memória o desalento daquele sol frio. Vestia uma blusa de linha onde os seios altos e cheios mal cabiam na circunferência concebida para conter um corpo muito mais delicado que o seu. No canto da boca, uma mancha escura advertia contra a pantomima que estava prestes a encenar. No alto do crânio, um grande círculo nu sublinhava o aviso. Mas sob o desalento daquele dia, não teve forças para lutar contra os mandos do que sentia. Repetiu os gestos de todas as manhãs, cada dia mais cuidados, a ponto de existirem por si só. Apenas deixou que fluíssem segundo sua própria vontade: debruçou-se no tanque, deixou que a água gelada lhe golpeasse a nuca e escorresse pelos cabelos, arrastou a baqueta vermelha até o meio do acampamento e começou a pentear-se com calma e langor. Gestos que repetia todas as manhãs desde que chegara. Gestos que provocavam as violentas desavenças de todas as noites.
Há semanas vinha aprimorando o ritual. Chegava a esperar acordada entre os lençóis pela hora em que pressentisse sua chegada para só depois se entregar ao seu olhar perscrutador. Ela tinha ciência de sua presença, como sempre tivera desde o primeiro dia em que chegara à cidade. Sentia-o na fluidez do ar. Percebia-o no respirar profundo de seu próprio peito. Sentia um enorme prazer em saber-se estudada por aquele par de olhos fugidios. E com o passar dos dias, os gestos duros abrandaram-se. Era para ele que se exibia sob a alvura das manhãs. Sentia seu cheiro e arfava, puxava as saias para o meio das coxas num gesto estudado e negligente. Nesses momentos, arrebatado pela cena ah, ele estava existindo. O diálogo entre gestos e olhares dava-se em linguajem muito própria. Cada dia mais estreito. Cada dia mais íntimo.
Naquele sábado o dia tinha resolvido nascer muito azul. O sol claro, de uma luz que aturdi os sentidos. Cheio de luz que não aquece, não conforta. Naquele dia, esse sol branco se instalou num céu muito, muito azul. E todo mundo que saiu à rua sentiu que era um dia de mandriar. Num dia onde a vontade, a moral e a firmeza de propósitos esvaiam-se. Nada poderia ter evitado o ocorrido. Nem o desvario que o conduzia até o acampamento muito menos o espalhamento dos gestos que a moviam todas as manhãs. Dia claro, mas frio, sem vida, sem firmeza de ânimo. Largar as vontades segundo sua própria razão. Não sabe que em dias que sol assim está no céu as vontades criam asas? Não saberia dizer quando aconteceu. A correria das velhas ciganas, o choro das crianças assustadas. Num dia dessa qualidade, qualquer cidadão podia ter caído na tentação. Não se trata de lassidão de caráter. Os homens corriam para segurar o marido que tinha entre as mãos o pequeno curativo que cobria a fileira de pontos na coroa da delicada cabeça. Ela os olhos embotados de sangue, tinha as mãos sobre o ventre por onde esvaia-se à lufadas. Ele, despojado de sua alma, sabia que era inútil continuar por essa terra de meu Deus e decidiu cerrar os olhos.
Naquele sábado, até santo
perderia a compostura.
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