RETIRANTE
Juraci

Àquela hora, o sol já ia a pino, intenso e amarelado de verão. Seus raios pareciam mais ardentes e a pele humana estranhava isso.
A poeira extraída da terra seca, cobria não o verde das plantas, mas o que sobrou delas. Alguém arriscasse tragar uma nicotina, talvez alastrasse fogo sobre os troncos ressequidos de uma antiga mata rala, antes que o cigarro, aceso fosse. Estava muito quente e a chuva não vinha. A fome e a seca, assolavam a região nordestina. Muitos migraram para a cidade e os que ainda resistiam, pouco se davam conta que viviam.
A meteorologia avisou, - pegou no radinho velho, agora mudo por falta de pilha - que chuva por ali, não tão cedo.
Naquelas bandas, a água que poderia vir, não penetraria na terra pela falta de mata viva. Apenas lavaria o terreno, lixiviando-o, ou seja, batendo no solo, virando enxurrada e não infiltrando na terra árida. Era nessa mesma terra que dona Didi trabalhava para o plantio, caso o Senhor derramasse um olhar chuvoso. Morava sozinha, a esperar o marido que nunca chegava. Fora para Pirapora à procura de trabalho, junto a Julião que, agora servente de pedreiro, poderia ajudar o irmão.
Damião ao partir, deixara o herdeiro gerado na barriga da esposa, cheio de esperanças. Não chegaria a conhecê-lo. A morte o levou, durante o parto. A mãe não fora capaz de salvar o rebento. Não tinha forças. Escapara por pouco. Tudo que nascia morria, tal era a sequidão da região. Antes de Damião viajar, ainda restavam algumas esqueléticas novilhas que ele desejava multiplicar o rebanho e fornecer o leite para o guri. Morreram todas. Até o cachorro Tupã, companheiro inseparável, amanheceu morto, um dia.
Dona Didi, sempre a olhar para a estrada, buscava uma pequena notícia, qualquer que fosse, do retirante. Estava cansada de ser única sobrevivente num raio de cinco quilômetros. A outra conhecida vizinha, também sofria do mesmo mal.
Numa dessas olhadas longínquas, avistou um motoqueiro a se aproximar. A alegria brilhou nos olhos. Olhos marcados pela solidão-saudade.
" Damião tá chegano. Coisa boa! Num vô deixá ele i mais. Só cum eu junto."
O contentamento durou pouco. Sob a poeira não estava o esposo e sim, o carteiro. Sua alegria deu lugar à tristeza:
"Coisa ruim tá acontecendo. Correio pur aqui? Nunca vi."
Dona Didi estava certa. Dificilmente mensageiros transitavam por aquelas bandas.
- Boa tarde, senhora.
- Fala logo, sinhô. Coisa boa sei qui num é. Sinto aqui dento ó... –batia
ela com a mão direta fechada, sobre o peito.
- Trouxe um telegrama pra senhora, – disse o carteiro enquanto
retirava o envelope da bolsa, guardada dentro do bagageiro da moto empoeirada.
- De qui fala, moço? É do meu Dami? Bem qui eu num quiria qui ele fosse. Nóis murria mas era junto; - resmungava a sertaneja, já aos soluços.
- Calma, minha senhora. Não precisa ficar nervosa. Primeiro leia a mensagem. Pode ser coisa boa. Só vai descobrir depois que ler. Posso beber água enquanto isso?
- Pode sim. Num é água limpa mais mata sede.É ali, apontava ela para um jirau lá no fundo do quintal e, sobre ele um pote de barro, tampado com uma cuia grande com várias outras pequeninas, servindo de copo. A água turva confirmava as palavras da senhora ainda jovem mas, envelhecida pelas marcas do sofrimento.
Dona Didi mal conseguia rasgar o lacre do telegrama. Leu ali mesmo, gaguejando:
"Marido Damião morto saudade de você. Vou te buscar."
Cunhado Julião.

"Jesuis! Meu Dami morreu... Meu cunhado vem mi buscar. Eu sabia qui era trem ruim... A curuja piou num gaio seco essa noite!... Eu sabia...
Sonhei a noite todinha... Meu Deus... O quieu faço?
Dona Didi chorou pouco. Não era hora de chorar. Ia para o enterro do seu Damião. Impensadamente, pulou sobre a moto, rodou a chave e o motor roncou. O carteiro em desvairada correria para evitar a loucura, quase fora atingido pela amadora.
E ela foi, leitor. Mas... andou poucos metros. À sua frente, um toco de árvore seca, fez questão de impedir a sua passagem. Ela não sabia que estava acelerando quando devia frear. Bateu com violência. O pó fino da terra quase cobriu seu corpo, inerte. Não carecia socorro. Inútil.
Dona Didi não descobriu que o telegrama dizia:
" Marido Damião morto de saudade de você. Vou te buscar. Cunhado Julião.
O telegrama foi guardado depois da breve leitura.

"Como o analfabetismo pode ocasionar a morte" – dizia o carteiro após a última pá de terra seca, sobre a sepultura rasa.

 

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