DOCE É A INFÂNCIA
Leila Silva
Na frente da casa, do outro lado da rua, ficava a cadeia. Um dia Lídia, ainda tão pequenina, caminhava sob os mangueirais quando o seu olhar cruzou-se com o de um prisioneiro à janela, as pernas e os braços livres, enfiados na grade. Podia vê-lo muito bem, a cadeia não era cercada por muros. O encontro durou poucos segundos, ela continuou os seus passos lentos, chutou algumas folhas e, decerto, desviou o olhar. Foi então que o prisioneiro disse: Não precisa ter medo. Ela chutou mais algumas folhas e continuou a andar olhando para o chão. Não tinha medo, raciocinou, afinal, ele estava do outro lado da grade e ela de fora. Mas quem era ele? Nessa altura, já tinha aprendido que aquela casa amarela não era uma moradia de gente de bem, muito embora não compreendesse o exato significado disso. Sabia, entretanto, que se a mãe chegasse ao portão e a visse dirigindo a palavra a um prisioneiro ela estaria frita. Não, não respondeu e se perguntou o que teria ele feito para merecer estar ali a observar as mangueiras por detrás daquelas grades enferrujadas. Abandonou o homem à contemplação, atravessou a rua e entrou em casa. Passou direto pela porta da cozinha onde a mãe estava ocupada com as panelas e foi para o fundo do quintal, subiu em alguns tijolos que já estavam estrategicamente postos ali e espreitou o vizinho mudo que passava os seus dias a limpar a casa. Limpava tanto que o chão refletia. Pelo muro ela, as irmãs e primas costumavam observar o mudo e o alpendre reluzente e riam sem saber porquê. O mudo tinha um mico preso por uma corrente e um papagaio. E o papagaio falava. Pois é.
O mudinho, diziam, ia com meninos para o meio do mato. E daí que o mudinho fosse para o mato com os meninos? Ninguém era proibido de andar no mato. Ou a ele isso era proibido só porque era mudo? Não podia entender. O mudinho vai para o mato com os meninos. Até a prima viera lhe dizer isso esperando que confessasse a sua ignorância mas ela só fez arregalar bem os olhos como se a revelação a tivesse impressionado muito.
Desceu num pulo dos tijolos quando ouviu a voz nervosa da mãe e, na pressa, arranhou os dedos no muro. A mãe mandou-a comprar verduras e advertiu que não perdesse o dinheiro como tinha feito da última vez. ´Essa menina parece que vive no mundo da lua!` Ouviu a mãe dizer e apertou as notas. Quando voltava, andando devagar e distraída, pela rua seis, a principal, deixou tudo cair por terra. Na sua frente apareceu um menino que ela conhecia de vista do catecismo. Assustou-se com aquela presença, tinha medo dele, ele vivia atormentando as irmãs e as meninas, juntava-se a outros e balançava violentamente a corda do sino que retinia desesperado e sem propósito. As irmãs acudiam apressadas, levantando os longos vestidos e ameaçando chamar o padre. Nada disso assustava aquele moleque que, dependurado na corda, gargalhava fazendo blém blém blém e só corria quando as irmãs já estavam bem próximas.
Pois esse mesmo menino estava ali, na sua frente e, num gesto inesperado, ajudou-a a recolher os legumes. Com a cara rubra, pressentindo o pior, balbuciou, timidamente: obrigada. Ele riu alto e repetiu a última frase da piada do elefante e da formiguinha: ´Obrigado nada, pode ir descendo a calcinha`. Lídia fugiu apavorada deixando para trás umas batatinhas.
Como foi boba, por um segundo acreditou na
pureza daquele gesto, por um segundo aquele menino tinha mudado aos seus olhos,
não podia ser o diabo que pintavam. Pode ser
pode ser que, por
um segundo, a sua intenção tenha sido a de ajudá-la, mas,
no último instante, ao olhar para aquele passarinho frágil não
tenha resistido à tentação de dar uma pedrada.
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.