CINCO MINUTOS OU MAIS
Jorge Gomes da Silva

O turista europeu ficou sentado nos degraus de madeira diante da loja. Nenhuma das pessoas em seu redor ficou de pé. A explosão varreu a rua como um bafo incandescente do demónio, os estilhaços voaram sem destino em quase todas as direcções. O som de vidros partidos durou alguns segundos para lá da deflagração. Depois, os gritos sobrepuseram-se a todo o tipo de sensação.

Ainda sentado, o turista percorreu o chão à sua volta com o olhar e viu muitos restos das pessoas que animavam a rua com as suas existências poucos minutos atrás.
Não percebia o que acontecera e sentia-se enfraquecer. Pousou a mãos nas pernas e não as reconheceu como suas, esfaceladas. Viu um jorro vermelho que julgava ter origem no corpo inerte mais próximo do seu. Depois viu um jovem que gritava palavras de ordem ou pedidos de socorro, não tinha a certeza pois não as ouvia.

O jovem rebelde, filho daquela terra manchada de dor, berrava o ódio que sentia. Excitado pela visão infernal que o cercava, enlouquecia e esquecia que a morte ainda pairava ali. Queria saudar uma vitória, rara alegria, não pensava e sorria perante a devastação e o horror.
Caminhava, punho erguido, por entre o caos. E ignorava a cólera garantida por parte da facção hostil.
Deteve-se a poucos metros de um loiro, talvez alemão. Patético, desfeito, sentado nos degraus em frente das ruínas de um estabelecimento onde nunca mais o iriam atender.
O jovem não reprimiu uma gargalhada, nervoso. Descontrolado, deixou-se dominar pelo choque e pelo absurdo da situação e riu até quase lhe falhar a respiração.
O turista, artéria dilacerada por um estilhaço de metal, tombou sobre o lado direito sem emitir qualquer som. Ainda não havia entendido o que se passara quando a hemorragia lhe esvaiu o tempo que restava e o pesadelo chegou ao fim.

O soldado chegou entretanto ao local. A rua estendia-lhe diante dos olhos um tapete feito de gente mutilada, moribunda, gente azarada que o acaso escolheu para ceifar. Deus não seria que nenhum Deus permitiria uma carnificina assim. Perturbado, o soldado vomitou.
Quando recuperou o controlo, estranhou o som das gargalhadas e decidiu investigar. Com prudência, passou a vista de relance pelos telhados que restavam em busca de um atirador emboscado e depois avançou, dedo tenso no gatilho, por entre o tapete vermelho estendido à sua passagem em nome da libertação de alguém.
Porém, a mensagem de liberdade não o sensibilizava e eram opostas as razões que o colocavam naquele cenário cruel. O riso do rapaz, histérico e despropositado, entrou-lhe na alma com a força de um trovão. Passo a passo, o soldado tomou posição num ponto de onde não poderia falhar.

O jornalista ferido, manga da camisa enrolada na cabeça para estancar o sangue que escorria, fotografava sem interrupção para não ter que pensar as imagens captadas. Registava por dever o que a razão lhe dizia para ignorar, instinto de sobrevivência obliterado pelo espírito de missão.
Rostos de muitas raças e certamente de várias nações, máscaras inexpressivas de vítimas que desconheciam tal condição, mortes súbitas gravadas na mente e na película em instantâneos de terror.
A lente captou um momento de agitação. Um jovem moreno que ria a despropósito no meio da rua e perto dele um soldado que pouco depois disparou, gatilho premido em simultâneo com o obturador.
O jovem, atingido na nuca, parou de rir e tombou como uma marioneta sobre os corpos desfeitos de outras vítimas de ocasião.

O jornalista não viu quem o agrediu com uma coronha, mas adivinhou, ainda antes de ficar prostrado de bruços, meio desmaiado. O soldado vingador apercebeu-se do sucedido, mas não desistiu de primeiro rolar o corpo do rapaz para cima. Certificou-se que o inimigo estava morto, a única garantia de que não voltaria a emitir qualquer som. Depois, dominado pela ira, avançou alguns metros até junto do repórter que rastejava sangrando no pó.

A segunda explosão interrompeu a sequência que se previa. Chegaria do céu, desta feita, como se apenas do céu pudesse chegar um final para aquela violência. Alheio à presença de tropas amigas nas imediações do alvo determinado, o piloto de caça soltou o seu perdigueiro feroz e este farejou o sangue com a sensibilidade de um tubarão. Um míssil apenas, mas bastaria para extinguir toda a vida que restava no perímetro do atentado letal.

Minutos depois, uma criança pequena, maltrapilha, passeou sem nojo ou emoção por entre a pasta de entulho com pessoas. Procurava outra criança que conhecia e que sabia estar ali no momento em que tudo aconteceu. Encontrou-a, o que restava, mais aquilo que procurava, bem firme entre os dedos crispados pelo espasmo final.
Com um sorriso de felicidade, desdentada, correu pela rua fora com o peluche chamuscado na mão, o trofeu que cobiçara quando com a outra criança se cruzou, nem cinco minutos atrás, e foi procurar um canto sossegado na esperança de brincar, sem medo da morte, cinco minutos que fosse. Ou mesmo um pouco mais...

 

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