STORMY BLUES
Bárbara Helena


"I just sit and wonder
Where can my good man be
When it rains in here
It's storming on the sea"


          Sempre que precisava de ajuda ele estava lá. Quase invisível, não exigia nada, apenas migalhas de atenção no universo ocupado dos meus dias.
          Nunca tive a legião de fãs de Mimi, nem seu corpo de sereia dos caminhoneiros, ou mesmo a beleza de Marina, a loura estrela de voz rouca, pairando sobre os reles mortais das periferias esburacadas. Eu era apenas uma backing vocal morena, triste e cheia de tédio.
          Mas por alguma razão que nunca entendi, me apareceu este tímido, esforçado e corajoso apaixonado. Corajoso porque jamais recebeu uma palavra de incentivo, um olhar doce, um agradecimento menos seco.
          De uma forma torta eu o odiava por me amar. Odiava ter um pobre coitado como único fã e sua miséria física tornava mais irritante a dedicação - significava minha incapacidade de ser amada por alguém melhor.
          Era ajudante de caminhão, mas não se encantou com as formas de Mimi. Sequer olhava para Marina, nossa Billie rediviva, quando ela cantava, de olhos fechados e voz magnífica, seus blues arrasadores.

"Memories always start 'round midnight...Haven't got the heart to stand those memories... When my heart is still with you... and ol' midnight knows it, toooooo."

          Ficava com os olhos estreitos pregados em mim, nas minhas entradas do backing... shabop... shabop... vendo algo que ninguém via, uma aura que nem eu mesma descobri por mais que pesquisasse o espelho ou o olhar alheio.
          Na primeira vez que o encontramos, em Sobradinho, chovia torrencialmente. O ônibus nos deixou, com os instrumentos, na estação deserta. Naquele tempo não tínhamos a alma e o trailer velhos, mas apenas nossos corpos jovens e esperanças guardadas em caixas de papelão vazado de luz.
          Estava muito frio, mas o pior era medo de molhar a guitarra nova que nem tinha sido totalmente paga.
          Ficamos olhando a água cair ao redor de nós, fumando um cigarro atrás do outro, enquanto a madrugada se fazia.
          De repente, sinto um toque no meu ombro. Era um peão moreno, alto, o rosto enrugado de magreza. Ele me sorriu dentuçamente e perguntou se podia nos dar uma carona. Antes que eu respondesse, Mimi já tinha agarrado o sujeito pelo braço, agradecido e sentado no boleia do caminhão.
          Ele nos deixou na porta do hotel barato e ainda se ofereceu para nos levar ao Dancing 43 no dia seguinte. O mínimo que podíamos fazer era convidá-lo para assistir ao show dos Cigarettes.
          Foi quando descobri que tinha um admirador apaixonado. Para surpresa e despeito de Mimi, acostumada a reinar soberana e divertimento de Marina, para quem ele era menos do que uma barata a ser pisada pelo seu sapato enfeitado de strasses.
          E também, infelizmente, para indiferença total de Billie, orbitando outras esferas em planetas separados dos meus.
          Desde o princípio eu o odiei. Odiei seu sorriso tímido e dentuço, seu olhar fixo em meu corpo, sua fome de mim, a certeza de que era o máximo de afeto que conseguiria esculpir dos meus dias vazios - um pobre coitado, feio e sem jeito.
          E ainda tinha que agüentar as gozações pérfidas de Mimi, as piadas de Marina e até um ou outro olhar brejeiro de Billie, o meu Billie, por quem eu teria cantado noites inteiras, sem receber um tostão, apenas para ouvir sua guitarra mágica soluçar por Marina:

"I only have eyes for you..."

          Sim, eu só tinha olhos para ele e me incomodava a adoração silenciosa do outro...
Cry me a river, já que você quer assim. E o explorava, usava seu amor dedicado com toda a maldade de que nunca me achei capaz, tentando que me odiasse, que entendesse que não queria seu amor de pano de chão para enxugar minhas lágrimas.
          Uma noite, em Cachoeira da Estrada, quando começamos o show, lá estava Walmyr na platéia, mais feio e siderado do que nunca, me olhando com adoração ( ele parecia adivinhar nosso itinerário, seguir nosso acidentado percurso ). Irritada, desviei o olhar e mal conseguia cantar os blues de fim de noite, a voz engasgada de ódio - o cara não entendia nada, danação de vida!.
          Para me espicaçar, Mimi, com voz sublime de Janis, cantava Sophisticated Lady. Ela também odiava aquela adoração constante que não se dirigia ao seu talento ou a sua bunda.

"Then, with disillusion deep in your eyes,
You learned that fools in love soon grow wise.
The years have changed you somehow.
I see you now..."

          A voz irônica, rouca, me provocava e, pela primeira vez, perdi a paciência. Larguei o backing e fui até a mesa dele.
          Seu sorriso se iluminou, os olhos brilharam - acho que acreditava ter finalmente vencido minha resistência.
          Mas eu estava cega de ódio e ressentimento - pela sua paciência, pelo amor que não pedi e me oferecia tão despudoradamente, pela minha incapacidade de despertar no homem de quem queria tudo o que um outro, desastradamente, estava morrendo para me dar. Pelo erro do qual nenhum de nós era culpado, mas me deixava com a boca seca e as narinas frementes de raiva.
          Ele se levantou e me recebeu carinhoso:
          - Amor?
          Perdi a cabeça e gritei:
          - Eu não sou seu amor, caralho! não sou nada sua, eu odeio você, odeio sua paixão patética que eu não pedi, seus olhares, sua insistência, por favor, pelo amor de Deus, me esquece, some daqui, desaparece da porra desta maldita vida!
          Minha voz, esganiçada pela raiva, ressoou na casa quase vazia, atravessou as mesas, bateu nas paredes, voltou soturna para nós
          Assustado ele caiu na cadeira, me olhando como um cão batido. Nem se defendeu.
          Billie atacou na guitarra, bem alto...

Memories always start 'round midnight

          Marina e Mimi começaram a cantar para abafar a dor anunciada:

"Haven't got the heart to stand those memories,
When my heart is still with you,
And ol' midnight knows it, toooo"

          Ele se levantou sem me olhar e saiu. Merda de vida.
          Fiquei sem ação. Estilhaçada.
          Cada um dos estilhaços ia caindo ao som do blues, em pedaços cada vez menores sobre o carpete roto.
          Nunca mais o vi.

          Depois do último acorde de Billie, recomecei a cantar, sozinha e à capela:

I just sit and wonder
Where can my good man be
When it rains in here
It's storming on the sea

          Ninguém teve coragem de me acompanhar. Continuei repetindo até perder a voz:

When it rains in here here here
It's storming on the sea sea sea

          Quando aqui está chovendo, chovendo, chovendo... tem tempestade no mar!

 

 

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