CONVERSA A DOIS
Ana Peluso
- Sabe o que eu acho? - pegou no cigarro, trêmula - Que o mundo é pequeno, isso sim!
Todo mundo sabia da perda do marido há alguns anos, e que agora ela encarnara a idéia de que ele voltara na pele do novo vizinho que ocupava o sobrado de frente. Eram até parecidos, mas nada além disso.
- Não acho. O mundo é grande e exato. Como deve ser. A chance de reincidência em desacertos diminui. - discordei.
- Você é pessimista, isso sim. - ela retrucou sem sorrir.
Algum silêncio se fez entre nós. Pude notar seu olhar cansado, a amargura, a mágoa que corroía seu coração assoberbado de amor por ele, ainda. Era nítido que ainda o amava, eu notava, e uma espécie de sentimento de compreensão me tomou por poucos segundos.
- Vocês vão sair hoje?
Ela me olhou. Tentou esconder o espanto com um pigarro forçado. Depois se ajeitou na cadeira e olhou para fora, os óculos de grau baixos. Seus olhos procuravam as janelas do vizinho num frenesi incontido - tanto, que naquele tempo que durava, parecia um cacoete; se abertas, sinal de que chegara em casa.
- Não sei... - seus dedos nervosos flanavam entre os tecidos da cortina, como se pudessem romper a matéria que a separava de sua estranha lucidez, e abrir as janelas do outro lado da rua, alterando destinos, milisegundos antes, até.
Havia momentos em que eu quase acreditava que o marido morto se tornara no vizinho, devido aos sorrisos que voltavam em sua boca quando se encontravam, que duravam até o dia seguinte como rosa barata.
Noutras vezes - a maioria - eu sabia que aquilo não passava de ilusão de alguém que sonha ser possível viver a mesma vida duas vezes.
- O mundo não é pequeno. - sussurrei.
Ela desviou o olhar de fora e me encarou com seu olhar profundo: o estilete, dentes cerrados:
- Eu não perguntei.
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