SEM BOCA
Marcelo Paradyse
Ele era escritor.
Escritor mesmo, nem era então.
Mas queria escrever. Só não tinha inspiração.
Mas desta vez ele tinha que escrever. Fazia mais
de 3 meses que não contribuía com sequer um texto para os Anjos
de Prata. Boca de Mulher. Este era o tema.
Cérebro funcionando, buscando por boca de mulher. Conseguiu se lembrar
de algumas bocas. Lábios provados com entusiasmo, sabor cerveja, cigarros,
halls, batom, nostalgia, muito ou pouco som, molhados, fortes, sob luzes de
neon.
Muito psicodélico, nada a ver.
Quem sabe uma busca na Internet?
Clicou num link que leva à tradução de um provérbio
para o esperanto, quase tão confusa quanto a versão em português.
Segredo em boca de mulher é igual a manteiga em focinho de cachorro
Em uma casa noturna de Portugal já tinha gente pensando nisso e fizeram
até um mictório com formato de boca de mulher aberta.
Não era um tema assim tão vago, poderia ser bem explorado, com
certeza, mas faltava ainda o ponto certo para iniciar o texto.
Abriu o mIRC.
Entrou no canal de sempre e começou a perguntar. O Que vêm a
sua mente sobre Boca de Mulher?
As respostas não adiantaram muito, não conseguia obter inspiração
nesta noite, talvez por ter gastado muito tutano pra escrever o texto sobre
técnicas avançadas de negociação envolvendo fusões
de mega corporações.
Não tinha jeito, foi dormir, tentaria de novo no próximo dia.
Sentia-se como no meio do nada. Seus olhos pareciam mirar para dentro
da própria cabeça, onde tudo que se podia tocar, era silencioso.
Sentia um frio ártico rasgar-lhe a espinha, enquanto seus pés
pareciam tocar no teto de um de uma sala redonda. Começou a ouvir pequenos
murmúrios à longa distância, como vozes de crianças
cochichando sobre assuntos proibidos. Olhava ao redor de si, girava o corpo
de um lado para o outro, jogava os braços, para cima e para os lados,
como um bêbado revoltado com uma mosca. Petrificou-se então,
à medida em que sentia vozes se aproximando lentamente, pequena coleção
sonora de risos assobiados, chiados, borbulhar de lábios, línguas
trepidantes. A discussão tornou-se intensa, os argumentos sem sentidos,
gritos, ofensas, gemidos se seguiam confusos, extinguindo-se até o
silêncio total. O coração batia forte, as mãos
trêmulas e suadas que apertavam contra o rosto foram aliviando a pressão
sobre a face atormentada. Sentia uma forte presença se aproximando,
algo tão forte que não podia compreender, coisa tão incrível
que causava-lhe temor, um temor estranho, quase insuportável. Queria
fugir, mas não podia andar. Queria esquecer, mas já não
podia negar. Ali estava ela. A única boca, só a boca, lábios,
dentes, língua, sorriso, batom, saliva, voz rouca, que nunca deixaria
de amar. Os lábios selam então o reencontro do covarde, com
a mais doce recordação da louca, que mais um sonho invade e
rouba, o último beijo que ele não pode dar
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