BOCA
DE FOGO
Luís Valise
Não resistiu e tornou a conferir as horas no relógio de pulso. Apenas dez minutos, que para ele pareciam horas. Faltavam dez minutos para largar o trabalho e ir correndo para casa, encontrar a mulher que mudara sua vida, acabando com as noites insípidas que se repetiam torturantes antes de ela chegar. Voltaram à sua memória detalhes do momento em que a conheceu, a paixão à primeira vista, a chuva fina que caía naquela noite em que ficara trabalhando até mais tarde, como sempre fazia, e que forçou-o a tomar um táxi para não chegar em casa encharcado. O trânsito estava complicado, o chofer puxou assuntos domésticos, coisas de mulher e filhos. Eurípides disse que não tinha aqueles problemas, já que era solteiro, mas que bem que gostaria de ter uma mulher que lhe fizesse companhia ao chegar em casa, ao que o outro retrucou que preferia ser solteiro e cair na farra todas as noites. E começou a contar aventuras passadas, reais ou imaginárias, que foram acendendo em Eurípides grande curiosidade em conhecer um lugar com mulheres como as que o outro descrevia. Armou-se de coragem e pediu ao chofer que o levasse a um lugar assim. Não era muito longe, e ao avistar o letreiro em néon com o nome Tenderly em azul quase desistiu, mas para não dar ao outro impressão de inexperiência, saiu do carro e entrou na boate quase vazia. Era cedo. Um garçom levou-o até uma mesa próxima ao piano e disse que logo haveria música. Eurípides pediu um Campari. Achava a bebida horrível, mas era fascinado por sua cor vermelho-sangue. Chegava a achar aquela cor meio erótica, até. Além disso, podia completar o copo com club-soda, e se bebesse devagar, uma dose durava bastante tempo. Estava distraído observando algumas garotas da casa, que exibiam coxas soberbas sob vestidos muito curtos, criando coragem para convidar alguma a sentar-se com ele, quando ouviu o piano introduzir algumas notas, e uma mulher começou a cantar Smile. Ela cantava e tocava piano. Tinha uma cabeleira exuberante, em tons castanho-claro, com mechas aloiradas. Olhava para baixo, para as teclas, e seu rosto estava escondido pela cabeleira cacheada. A voz tinha uma certa melancolia, como se ela soubesse que não seria ouvida. Cantava para si mesma. Eurípides gostava daquela música, como gostava das coisas que lhe davam alguma esperança. Cerrou os olhos, imaginou-se alvo dos versos que diziam que, apesar de tudo, era preciso sorrir, sorrir sempre, e sorriu para si mesmo um sorriso piedoso. Quando a música terminou, a cantora ergueu a cabeça, olhou em torno, e surpreendida com o espectador atento que sorria, sorriu de volta. Eurípides viu seus olhos castanhos, grandes, o nariz bem-feito, e a boca rubra, coberta de batom flamejante. Sentiu na hora um calor nas faces e um ardor no peito. Ficou hipnotizado pela boca vermelha que se destacava na pele clara como uma mancha de sangue sobre um vestido de noiva. Deu dois grandes goles no copo com Campari e ajeitou-se na cadeira, a atenção voltada para a cantora, que tornou a se esconder atrás dos cabelos, e começou outra música, que ele não lembra qual era, mas de Smile ele jamais esqueceria. Seus olhares se encontravam por entre os cachos de cabelo, como crianças brincando de esconder atrás das colunas de uma igreja. Eurípides ofereceu um drinque, e quando ela acabou de tocar veio em direção à sua mesa. Aceitou a bebida, agradeceu a atenção e os aplausos, mas não aceitou o convite para sair mais tarde. Disse que era casada, que tratava bem os clientes da casa, e mais nada. Terminou o drinque, agradeceu, pediu a ele que voltasse sempre, a casa agradecia. Não eram as palavras que Eurípides gostaria de ver saindo daquela boca. Mas ele não desistiria tão facilmente, como ela veria mais tarde. Olhou
outra vez o relógio. Desligou o computador, fechou as gavetas,
pegou o paletó e saiu apressado para casa. Parou no bar da esquina,
comprou cigarros. Girou a chave na fechadura sem fazer muito ruído,
não gostava de incomodar seu amorzinho. Foi direto para a cozinha,
preparou um Campari com club-soda e três pedras de gelo. Voltou
para a sala, escolheu um disco, soltou a gravata. Sentou-se na poltrona,
deu um gole na bebida amarga, a música começou a tocar,
dizendo pra ele sorrir. Ele sorriu, como sorriem os apaixonados. Levantou-se
e foi buscar seu amor. Abriu o freezer, tirou um grande vidro redondo,
levou-o para a mesa da sala. Dentro, a cabeleira castanho-claro cobria
a cabeça congelada. Eurípides levantou o pote com as duas
mãos e deu um longo beijo no vidro, bem sobre a boca vermelha,
rubra, flamejante. |