QUASE NORMAL
Husky
Era setembro. A primavera já se aproximava e era notada nos bosques carregados e coloridos. O frio havia desaparecido, mas deixou seu rastro. Para onde quer que eu olhasse só via a boca das pessoas. Era uma mania muito estranha, porém eu apreciava seus diversos desenhos, tonalidades, tamanhos, consistência, rachaduras... Eu classificava as pessoas pelas bocas. Decidia quem era grosso ou simpático apenas com uma análise meticulosa dos lábios e quase sempre acertava. Era uma espécie de amor à primeira vista, só que por bocas. Se eu gostasse deles, automaticamente gostaria da pessoa.
Foi então que me deparei com ele. Fiquei estática. Aquela boca era diferente de qualquer outra. Não se enquadrava em nenhum de meus parâmetros. Mas, antes que me perdesse em meus devaneios, ele disse olá e pediu uma informação. Depois de lhe ajudar ele simplesmente agradeceu com um sorriso fenomenal. Eu fiquei a imaginar como seria tocar aqueles lábios tão cheios de mistério e poesia.
Quando voltei ao normal quer dizer, mais ou menos normal vi que ele deixou cair um cartão com seu telefone. Coincidência ou não, resolvi ligar. Ele era psicólogo e eu precisava vê-lo desesperadamente. Cedi aos apelos do meu íntimo e liguei. A secretária atendeu e preencheu um breve cadastro no qual perguntava qual o motivo da consulta. Vacilei por um instante e então soltei: sou obsessiva. Não entrei em detalhes com aquela simpática criatura, mas, talvez a obsessão por bocas fosse um bom motivo para chegar até ele.
Então, na quinta-feira eu estava
no consultório bem antes da hora marcada. Ele atrasou um pouco, para
o meu desespero. Minutos depois me chamou. Olhou para mim, olhou para a ficha
e olhou para mim de novo. Ele não me reconheceu. Sem rodeios, foi direto
ao assunto:
- Então quer dizer que você é obsessiva?
- Bem, eu... É... Como posso dizer? Sabe, eu fico olhando para algumas
coisas...
- Mas, que coisas? Seja mais específica.
- Espere um pouco. Eu preciso fazer uma pergunta antes de continuar. Que tipo
de boca te atrai?
- Ora, qualquer boca. Sendo de mulher, para mim tanto faz.
De repente, uma cortina caiu dos meus
olhos e eu saí do transe. Tudo se tornou tão banal que eu não
entendia o que estava fazendo ali. Todo o encanto acabou. Peguei minha bolsa,
apertei-lhe a mão e disse:
- Muito obrigada, doutor! Estou curada!
- Como assim? Eu não fiz nada...
- Exatamente! E era disso que eu precisava.
E assim me curei da minha estranha obsessão.
Libertei-me do fascínio pelo psicólogo e por bocas. E me tornei
quase normal. Quase.
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