Boa pergunta, Gabrielle
Eduardo Prearo

Dobradura de uma boca feita com papel de bala, no chão de um trem do subúrbio. Boca de mulher ou barquinho? Se percebem o rubor da face, muito desconfia; um algo queima porque surge acanhamento súbito, incontrolável. Tenta fugir de si mesma, é o ego. O rubor não é reflexo da boca de mulher ou do barquinho vermelho rutilante, o rubor talvez nem exista. Mas ele existe; ela já se observou uma vez no espelho enquanto sentia aquela queimação. Vira-se para Celuta, a amiga cochila (ainda bem), o rubor a entorpece. Passa o dedo atrás da orelha, cheira-o, pensa num banho. A água ajuda a eliminar os miasmas. Seu sabonete de calêndula encareceu, seu sabonete está em falta. Uma mulher de pé a devora com os olhos e isso é insuportável. O trem pára, Es-ta-ção In-gle-sa, as portas automáticas se abrem. Levanta-se, nem diz tchau para a amiga, tergiversa e sai.

Lawrence está no banho, pensa na vida, pensa no emprego novo, solfeja uma música de Cole Porter sem saber que ela é de Cole Porter. Seu chefe tem vinte anos, ele esqueceu-se desse detalhe. Quando tinha vinte anos, as pessoas de quarenta pareciam realizadas, mas ele não é realizado em nada, absolutamente nada. Gabrielle chega e resmunga, é o cheiro de cigarro, está cansada. Põe as chaves sobre a cômoda, entra no banheiro, três degraus abaixo do quarto, e despe-se a fim de tomar banho com o marido. Um banho a dois quem sabe é relaxante. Iniciam a relação, mas ela fica agitada e vai correndo para a sala. É o rubor. Lawrence sai do chuveiro e acende um cigarro. Sente vergonha, o patrão não fuma há dois meses.

- Gabrielle, você não tem nem trinta anos para ser assim frígida.

- Cala a tua boca, cala a tua boca, nojo! Estou farta de você!

Gabrielle liga o televisor e tenta se concentrar no filme. O morro dos ventos uivantes. Ah, está no fim, mas eles serão felizes no céu. Como será ser feliz no céu? Há alguém batendo na porta, alguém que gira a maçaneta delicadamente e entra. É um homem, um animal, alguma coisa assim. Ele avança nela, puxando-a para um quarto contíguo à sala, e joga-a na cama. Ela começa a gemer,a gemer,a gemer...Lawrence assiste à cena pelo buraco da fechadura, o fortão trancou a porta. Depois de saciados, o animal ou o homem e Gabrielle rolam um pouco pela cama de solteiro velha, uma cama que sobrou, e caem no chão. Lawrence resolve ir dormir, não quer provocar escândalos àquela hora da madrugada, e o buraco da fechadura limita a visão. Ele respeita o desconhecido. Foi somente um delírio, foi somente um delírio. Olha para a roseira colocada ao lado do televisor e repete várias vezes: não vai dar flor?, não vai dar flor?

No outro dia, depois do expediente, Gabrielle e Celuta estão no mesmo trem de sempre. Chove e Celuta crê que esqueceu o guarda-chuva. Mas não o esqueceu. Esquecer a si mesma é que é difícil.

- Gabrielinha, passa este batom a prova d´água. Tem um gostinho especial de morango silvestre.

- Oh, vermelho não. Não passo batom, você devia saber. E aqueles seus poemas?

- Ih, quem os lê me rejeita, silencia. Escrever é estar num deserto crescente.

- Cria um poema agora pra mim?

Celuta prende suas madeixas com um elástico de escritório e fixa os olhos no teto do trem. Fecha-os,então, mentaliza algo e sorri; precisa de inspiração.

As bocas neste vagão,
as das mulheres
bocas bastantes de toda cor,
até mesmo verdes e azuis,
não estão inertes,
movimentam-se o tempo todo.
Delas sai o ar que também por elas entra,
sai o canto, lindo canto de ninar,
saem palavras, saem suspiros, saem línguas.
A que mais me lembro soprava na minha dor
ou então me mandava um beijo.

- Celuta, veja!

- O que foi?

- O trem não parou na Estação Inglesa, passou direto. Morro de medo! E agora está correndo demais.

- Isso nunca aconteceu mas acontece. Que tal dormir lá na minha casa?

- Não sei. Lawrence não está muito bem. Está, para variar, detestando seu novo chefe, está com ciúmes dele. E a nostalgia? Chega o fim de semana, coloca aquela música Doce Espera e fica emocionado. Foi ao som dessa música que fez seu book há mais de quinze anos.

- Ih, agora ele está calvo e velho. Pesquise pra ver se há algum modelo calvo no mercado. Além do mais, ele precisa de um regiminho e...

- Ele não quer ser modelo, só quer lembrar que um dia foi tão bonito quanto seu chefe atual.

O trem adquire maior velocidade. Celuta e Gabrielle gritam aterrorizadas. De repente ele pára. Não há mais ninguém no vagão, somente elas; não mais energia elétrica, mas uma luz exteriormente.

- Celuta, o que aconteceu? Acha que morremos?

- Boa pergunta, Gabrielle. Não sei. Creio que sim. Tudo acaba um dia e esse dia chegou. Finalmente!

- Assim, tão de repente? Bom, pelo menos acho que não faremos muita falta na firma, não é? Você era sozinha, e quanto a Lawrence, ele sabe se virar.

- Vamos amiga. Parece que lá fora há um deserto crescente esperando por nós.

- Não fale assim, Celuta!

 

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