LEILINHA
Daisy Melo


Não lembro muita coisa daqueles anos loucos. Sexo sem camisinha. Maconha, discussões filosóficas sobre a ribombeta da parafuseta no bar Jobi, no Leblon. Praia e bundas. Corpos lisos sem tatuagem. Faculdade de Economia na PUC. Típico garotão da Zona Sul.

Eu tinha pretensões literárias, escrevia poesias. Bem... colocava uns sentimentos numas frases desconexas. Salpicava umas letras misturadas na folha e nomeava: poesia. Hoje, olhando meus olhos cansados no espelho, a barba grisalha apontando na face e um rosto que sempre me causa surpresa, pergunto: o que seria de mim se tivesse seguido minhas linhas?

Pois é... de poeta marginal a funcionário público. Bem sucedido, diga-se de passagem, se é que vocês me entendem.

Mas não quero falar do hoje.

Resolvo limpar a gaveta do escritório na tentativa de fugir do blá-blá-blá da Claudia, minha namorada, 23 anos mais nova, que reclama do massagista de shiatsu. Não gostou do cheiro do incenso. Putz...as merdas que a gente faz.

Encontro no meio da papelada, aquela pasta cinza, há muito esquecida. Dentro, algumas das minhas... bem... poesias. Folhas amareladas arrancadas de algum caderno em espiral. Minha caligrafia torta. Divirto-me com isso. Descubro misturado aos meus garranchos, um guardanapo amassado, carimbado com uma boca de batom, escrito embaixo “E viva a liberdade!!!, Leilinha (dois minis corações no lugar dos pontos dos ii), Rio de Janeiro, Jobi, madrugada do verão de 1980”.

Leilinha...Todo mundo queria comer a Leilinha. E é claro que a boca era o que menos importava. Tinha aquelas pernas e, meu Deus, tinha a bunda mais linda que eu já vi, que mal cabia naquele biquíni baixinho, quadriculado. Mas, não, minhas senhoras e meus senhores. Eu não comi a Leilinha. Só nas minhas noites solitárias.

Ela era livre sim. Mas só eu entendia aquela liberdade que era mais da alma que do corpo. Comer mesmo a Leilinha só o Jorjão. Coisa que nunca entendi. O cara arrotava, peidava e ficava bêbado no terceiro chopp. E passava a cantar todas as meninas da turma. Cantava até a Isa que estudava engenharia e era vesga, dentuça. Leilinha fingia que não percebia - afinal, somos todos livres não é? - dizia com o olhar distante e os olhos úmidos. E ornava sua bela testa bronzeada com os chifres ofertados pelo Jorjão, vascaíno e diretor da ala dos passistas do Salgueiro.

Como estará a Leilinha hoje? Será que engordou? Provavelmente... soube que casou com o Jorjão, por incrível que pareça. Separou? Teve filhos, netos? Será feliz? Felicidade...coisa para poucos iluminados. Mas, iluminada ela era, com certeza. Será que ainda discursa sobre Hegel com aquele ar afetado, quase infantil de intelectual? Proust? Emociona-se com Clarisse? Saberá ainda de cor as poesias do Bandeira, do Pessoa, do Gullar? Ainda lê Kafka? Leilinha... que decifrava mapa astral e acolhia condescendente as minhas manias virginianas.

Dobro o guardanapo com carinho e cuidado. Cerro a boca borrada entre as páginas perdidas das minhas poesias e lembranças, e volto para 2004 com Claudia a me chamar com aquela voz de neném que, confesso, me encantou nos primeiros tempos. Ela quer transar. Putz! Mas toda hora? Não que eu não goste da coisa, claro que gosto. Malho, corro na Lagoa diariamente, me cuido, não fumo e parei com a cerveja nos fins de semana por causa da barriguinha reticente. Agora só Scoth. Mas, pôxa... é muito para um cristão pedir, depois do sexo, algo a mais do que uma preleção sobre o novo artigo da revista “Nova” que ensina como agarrar seu homem por 24 horas? Ou a atual moda das academias?

Imagino Claudia vomitando com a barata do Kafka e penso de novo em Leilinha que gostava das minhas poesias e recitava Cecília: “não sou alegre nem sou triste. Sou poeta”.

Tomo uma decisão, a mais importante da minha vida: amanhã vou escrever uma poesia. Mas agora... o que me resta? Trepar com a Claudia.

 

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