MARIA COSPE FOGO
Thaty Marcondes
Maria era mulher bem humorada. Sempre
brincando, fazendo piada de tudo, além do seu jeito próprio de
ser, muito engraçado. Difícil falar a sério com ela. Se
alguém ia desabafar, contar um caso triste, alguma coisa ruim, com certeza
Maria ia se rir do assunto, mostrar o lado bom, mas sempre do jeito: palhacinha
nata, como dizia seu pai. Aonde chegasse, logo fazia amizade, por conta
de seu aparente bom humor. Eu disse aparente? É isso mesmo, pois, no
fundo, Maria era extremamente triste e infeliz. Fora casada com um crápula,
que nela e nos filhos 4 batia; alcoólatra, preguiçoso,
ao invés de trabalhar, obrigava a pobre a fazer jornada dupla: emprego
de faxineira na empresa, durante o dia, até as 16:30h, e depois os afazeres
da casa. Com o tempo, foi aprendendo. Uma das secretárias se compadeceu
da pobre e ensinou-lhe, até, a escrever e ler. E continuou ensinando,
e Maria foi progredindo, até o dia em que... Maria aprendeu como se puxava
um tapete. E derrubou a pobre que a ensinara a fazer tudo, ficando com o seu
cargo. A outra sabia que Maria tramara tudo. Foi boa aluna até pra aprender
a pensar: planejou tudo. Até na vestimenta, copiava a professora, agora
demitida e desempregada.
O marido? Ah, assim que começou a melhorar Maria mudou de casa, na calada
da noite, enquanto o pobre se embebedava em alguma esquina recheada de prostitutas.
Ele até tentou melhorar, arrumou emprego, quando viu que Maria subia
e até empregada contratara. Nunca mais abriu a porta pro coitado. Nem
pra que visitasse os filhos. Pra isso, deu queixa na delegacia, fazendo a cabeça
do delegado, não se sabe a que preço, e impedindo o pobre coitado
de visitá-los, inclusive, enquanto não se ajeitasse na vida e
pagasse pensão. O cara, sem estudo, nunca pensou em virar o jogo e pedir,
ele, pensão pra mulher, que agora fazia pose de bacana. Imagine que até
carro ela tinha! Próximo passo? Comprar uma casa. E lá foi Maria.
O que ela fez pra conseguir a entrada? Isso ninguém sabe até hoje.
E nem quem foi sua professora pra aprender tal feito. Diziam, em baixo tom,
que ela tinha lá seu casinho com o gerente geral, que a admirava por
ter chegado aonde chegou, sem estudo. Derrubava quem fosse, quando queria alguma
coisa. Pois não foi que chegou a gerente de filial?
Mas, quem fosse mais atento, haveria de notar que os funcionários da
empresa mudavam constantemente. E os antigos, os que permaneciam, sabiam que,
pra manter o emprego, tinham que se ajoelhar à Maria.
Até no cabeleireiro Maria conseguia mandar, pelos bastidores, como sempre,
sem nunca mudar aquele jeitinho encantador, sempre sorrindo, se fazendo de engraçada,
a palhacinha do papai.
Um dia, ao chegar em casa, verificando a correspondência, viu um envelope
dourado, daqueles caros, com 5 entradas especiais para camarote em um circo
internacional, curta e seleta temporada na cidade. E lá foi Maria. Afinal,
circo de luxo, de graça, camarote, devia ser em deferência a ela,
por ser uma pessoa especial. Final de semana, empregados de folga, foi com as
crianças. Estranhou, ao chegar, a ausência de carros caros ou de
pessoas tão bem vestidas quanto ela e seus filhos. O lugar era esplendoroso:
no estacionamento do maior e melhor shopping local, fora montado com tenda branca
e dourada, pajens elegantes, guloseimas sofisticadas e gratuitas para as crianças.
Um palhaço bem trajado recebeu-a, dizendo que os adultos ficavam de um
lado, em camarotes apropriados, e as crianças em outra ala; que não
se preocupasse, pois seriam cuidadas por babás especialmente treinadas,
com todo conforto e segurança, além dos comes e refrigerantes
das melhores marcas. Entraram e tudo era muito escuro. O caminho era iluminado
por uma lanterna, que o cômico levava à mão. Ele a acomodou
em uma poltrona que mais parecia um trono. Pediu que ela vestisse o manto e
aguardasse a coroa real que seria entregue no andar do espetáculo. Maria
ficou assustada com tudo aquilo mas, sua vaidade era maior que o medo. Começou
a gostar da brincadeira. Só não gostava muito era daquele escuro
total. De repente um holofote, apenas sobre Maria, iluminando-a a tal ponto
que a cegava em relação à sua volta. Ela não podia
ver nada. Apenas ouvia. A voz, feminina, parecia-lhe conhecida, porém,
ela não a reconhecia, no momento, devido à emoção.
A voz cumprimentou a platéia em vários idiomas. Uma chuva dourada,
talvez purpurina, começou a cair sobre Maria. Mas para ela era ouro:
sim, ouro! Era o que ela merecia! E em seu egocentrismo, começou a participar
daquela brincadeira, como se fosse, de fato, uma rainha, rodeada de súditos
leais, submissos e sorridentes, diante de seus encantos e beleza. Maria foi
ao delírio.
Diante de si, surge um palco redondo, qual um picadeiro, todo iluminado em néon,
rica e finamente decorado, com estrelas brilhantes, pontos luminosos qual pedrinhas
de rubis e esmeraldas, fitas douradas. Ali começa o desfile da vida de
Maria. Todas as suas maldades, todos os sorrisos fingidos, os abraços
falsos, as armações arquitetadas. Após essas cenas, os
coadjuvantes adentram o palco, fazendo reverências de agradecimentos à
platéia invisível: a moça que tanto a ajudou, no início,
maltrapilha qual mendiga, esparsos dentes na boca ressecada, olhar embaçado;
o marido barbudo, magro, olhos injetados pela bebida. O desfile continua: desempregados
por sua causa; amantes descartados; pessoas usurpadas de seus bens, e, por último,
seu pai, com um sorriso brando, lágrimas por seu rosto enrugado de velho
desamparado e desesperançoso, olhando-a nos olhos: Palhacinha nata
do papai!. Os filhos viram-lhe as costas, em sinal de reprovação
por tudo que ela fez.
Pensam que Maria caiu do salto? Ou perdeu a pose de dona do destino?
Levantou-se, caminhou até o palco, pegou a coroa cravejada de pedras
que estava no centro, colocou-a, levantou a cabeça, roubou o cetro da
mão da amiga que tanto a ajudou e, num gesto altivo e orgulhoso, começou
a saudar a platéia às escuras jogando beijos apaixonados, sentindo-se
a rainha da vida, aquela que venceu a tudo e a todos, independente do preço
pago.
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- Doutor, e essa senhora que não
fala? A tal Maria Cospe Fogo? Disseram-me que trabalhava em circo.
- Ah, minha jovem estagiária. Essa ala da psiquiatria é a das
histórias mais tristes. Contaram-me que era uma mulher muito arrogante,
porém, extremamente simpática e alegre. Fez tantas, mas tantas
maldades para subir na vida. Um dia, no meio de um espetáculo circense,
subiu no picadeiro, pegou a tocha da engolidora de fogo, como se fora um cetro,
e começou a beijá-la, até que o fogo se espalhou por sua
face. Parece que a loucura atingiu a tal ponto sua percepção,
que ela nem sentiu dor. Porém, como a queimadura na boca fosse profunda,
mesmo após várias cirurgias, ela não recobrou a fala.
- Coitada!
- Não fique tão comovida com ela, menina. Morreu para o mundo
dos lúcidos sentindo-se uma rainha! Essa a razão dessa pose altiva.
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