VARRIÇÃO
Nato Borges

 

Hora de acabar. Não via a hora de terminar e sabia que não havia hora. Não haveria nunca. Não acabaria nunca. Ali, na vassoura, a extensão dos seus braços. Idas e vindas que os músculos não sentiam mais. Força automata, retirada da alienação, do não pensamento. Vida não?

Nos movimentos via a extensão de seus pensamentos. Idas e vindas, mortes e vidas. E uma sujeira que não acabava nunca. De onde vinha tanto pó? Tinha dias, pensava que o raciocínio empoeirava sua vida. O pó vinha dela. Tanto pó. Achava que não poderia voltar, se nunca tinha saído. Retornarás para onde sempre estiveste, pensava com uma ponta de tristeza e outro tanto de segurança. Conhecia tudo aquilo.

Os cômodos todos, móveis em seus lugares. Acomodava-se àquilo e não tinha outra vida, não sentia prazer ou dor e os braços continuavam o movimento. Frenético às vezes. Varria com mais força. Ódio contido de tanta amargura, um pouco de saudade, uma pitada de arrependimento e todos aqueles quartos e salas infindáveis.

Terminar para quê? Sua vida ia e voltava para o mesmo lugar, as mesmas conclusões, os mesmo móveis de sempre. Um mundo de tapetes no chão, todos os obstáculos, desvios, esforços inúteis. Da vassoura para debaixo do tapete, um movimento rápido. Da sua memória para o esquecimento, uma eternidade. Mesmo assim, continuava varrendo.

Algumas vezes hipnotizava. Seus olhos prendiam-se ao movimento da piaçava, que ia e voltava. Esquecia o trabalho, pensava no resto, entristecia. Não havia resto. A mente vazia. Limpa como deveria estar a sala, como já estava o resto da casa. Faltava a sala, o lugar da família, da reunião. Essa não estava limpa. Não tinha acabado ainda.

Sob o tapete branco um mundo de lembranças e a vassoura não parava. O pó não acabava. Sua vida tinha acabado? Varreu anos para os cantos e eles ficavam ali, acumulados. Já não os identificava de tão misturados. Não conseguia se livrar deles de tão entulhados. E o tapete ainda era branco. Por que permanecia limpo?

Melhor ignorar o tapete. As lágrimas sujariam o chão e teria que começar tudo de novo. Não queria começar mais nada. Para isso teria que acabar de varrer, e isso não ia terminar nunca. Começar de que jeito? Se o tapete continuava branco, ia continuar varrendo. Como a lareira apagada. Ia continuar apagada ela também. As duas ficariam apagadas. Era um lugar a mais para esconder a sujeira.

Quanta sujeira! Quanto trabalho por nada! Para que tanto esforço? O pó não acabava e não poderia começar de novo. A sala não serviria para mais nada também. Sozinha como a vassoura, tinha menos sentido que ela. Os outros cômodos não. Estes guardavam certa utilidade. Não tinham lembranças, nunca tiveram família. Mas a sala? O tapete estava ali e não mostrava sequer algumas manchas. Que embolorasse! Que guardasse embaixo de si todo o pó de suas lembranças. Ali elas sumiriam.

Era um bom lugar para sumir. Desaparecer no tapete parecia um bom caminho. Por que não? Seguir o movimento e varrer a si mesma para debaixo. Faria parte da sala para sempre. Seria, para sempre, sua única lembrança. Vazia, se ocuparia de si mesma e não acabaria nunca. Vingança perfeita, estamparia o tapete, branco como tudo o que não sentia. Não sentiria mais. Largou a vassoura. Tinha enfim terminado.

 

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