NÃO
MATEM O CANTOR
Luís Valise
A pequena Guarumã amanheceu com um calor da porra, e até o cocorococó dos galos soava borocochô. Brigite abriu a janela no mesmo instante em que o sino da igreja iniciava a série de badaladas que era o inferno dos bêbados da cidadezinha. A água morna do chuveiro não espantava a leseira causada pela noite de insônia. Mais uma vez as lembranças arrombaram as portas da memória que a manicure preferia ver trancadas, trazendo à tona fatos do tempo em que ela ainda não era Brigite, mas Brígida, criada na linha-dura do evangelismo calvinista até que cedeu aos apelos do filho do farmacêutico, que prometia por somente a cabecinha mas só não pôs as bolas também porque gozou antes. Brígida engravidou antes de conhecer o orgasmo e sua família despachou-a para bem longe, antes que o pastor mandasse-os sentar no último banco da igreja. Voltou sem barriga e com Anselmo, rechonchudo e loirinho como o pai. Ao perceber que teria que conviver eternamente com aquele ambiente soturno, cheio de meias-palavras enviesadas, deu o menino de papel passado para o dono da farmácia e caiu no mundo. Jurou pra si mesma jamais amar de novo, e mantinha de pé sua promessa fazendo do coração não mais que um músculo. Escolheu aquela cidade ao ver seu nome num guichê da rodoviária: nunca ouvira falar em Guarumã, e ali mesmo é que ninguém jamais iria procura-la. Ficava no Mato Grosso, perto da fronteira boliviana, passagem obrigatória de traficantes, pistoleiros, garimpeiros e outros da fina flor da espécie. Arrumou emprego de manicure. Morava num quarto nos fundos do Salão de Beleza Xuxa Morena. Com o passar do tempo foi ficando exigente, e depois de experimentar todo tipo de homem, do Juiz da cidade ao bilheteiro do único cinema, chegou à conclusão que os únicos a trata-la dignamente eram os artistas, e assim passou a dar somente para os músicos que passavam pelo Pigalle, misto de boate e inferninho que apresentava duplas sertanejas todas as sextas e sábados. Cabelo tingido de loiro, cortado curto por causa do calor, mudou o nome para Brigite e passou a dar em cima dos cantores que apareciam na cidade. Por isso, logo mais à noite, vestiria um tomara-que-caia, capricharia na maquiagem que trazia seus 43 anos para perto dos 35, e lançaria olhares flamejantes para quem estivesse ocupando o palco do Pigalle. Como todas as sextas, o salão tivera um dia movimentado, num entra-e-sai constante das moças solteiras de Guarumã. Brigite ouvia todas as fofocas e quando o dia terminava fazia questão de não se lembrar de nenhuma. Estava ali numa espécie de penitência, não precisando partilhar dos segredos das filhas do atraso. Também não contava nada de sua vida a ninguém, e era considerada uma perdida, uma coitada, uma louca-varrida. Abriu o chuveiro ansiando por água fresca, mas esta era ainda mais morna que a da manhã. Enxugou-se lentamente para não aumentar o suor. Preparou um copo de cuba-libre com três pedras de gelo, e ficou sentada no escuro, nua, criando o clima, preparando o espírito de deboche com que iria afastando os pretendentes, até conquistar o artista principal com suas coxas à mostra, sua língua oferecida entre os lábios, seu sorriso de promessas. Precisava apenas beber um pouco menos para evitar o que às vezes acontecia, e não acabar na cama com os dois da dupla ao mesmo tempo. Um era o suficiente. Um de cada vez. Na porta do Pigalle um cartaz anunciava a atração da noite, um nome em inglês*, que ela nunca ouvira falar. Gostava das duplas sertanejas com suas músicas cheias de desgraça, como se tivessem sido escritas para ela. No palco um homem afinava a guitarra, e três mulheres vestidas de cetim esperavam os acordes iniciais. Uma, baixinha, de cabelos dourados e olhos azuis; outra, mais cheia de corpo, cabelos ruivos, e a terceira, sem nada de especial, e com cara de tédio. Brigite notou que seu tamborete estava reservado pra ela. Gostava de sentar-se no fundo do balcão, de onde podia ver todo o ambiente. Pediu um cuba com bastante gelo, pois sabia que o bar servia rum de terceira. Um acorde da guitarra vibrou de repente, calando todas as vozes e espantando as pombas que dormiam nos beirais do bar de esquina. Um dedilhado preciso introduziu a primeira canção, e a voz que saiu da boca da baixinha arranhou o coração de Brigite, que rápido tomou um gole da bebida. Ela cantava uma canção em inglês, e as outras duas faziam chubidubidu. Ninguém entendia uma palavra, mas todos sabiam o que a canção dizia. O amor, quando é sincero, é fácil como o esperanto, e, para alguns, fatal como a esperança. Brigite deixou-se levar pelas canções, e quando deu por si estava junto do palco, acompanhando os dedos nervosos do guitarrista, meneando o corpo no compasso da melodia, sorrindo sempre, até que ele sorriu de volta. O guitarrista tinha um dente de ouro, e Brigite sentiu que estava perdida. Voltou ao balcão e pediu outro cuba-libre. O show durou quase duas horas, e ao terminar todos suavam em bicas, o guitarrista, as cantoras, e boa parte da platéia. Ele guardou o instrumento, passou perto de Brigite e sussurrou Já volto, dirigindo-se ao depósito de garrafas que servia de camarim. Voltou de rosto lavado, cabelos penteados, vestindo outra camisa, e suas primeiras palavras foram para o garçom: Um uísque. Duplo. Há quanto tempo Brigite fizera a promessa de não amar outro homem? Não lembrava, mas estava na hora de quebrar o juramento. O guitarrista não era nenhum garoto, tinha lá seus mortos e feridos na bagagem, algumas rugas no rosto mostravam a borda do precipício, e o dente de ouro parecia iluminar sua voz triste e rouca. Estavam assim, no téte-a-téte, olho no olho, os dedos nervosos do homem brincavam com seus dedos bem-cuidados de manicure, quando a cantora baixinha e de cabelos dourados chegou, dirigindo-se ao músico Billie, você vai demorar? Nós já estamos indo. Brigite percebeu um certo mal-estar, ele abandonou subitamente seus dedos, sua voz vacilou um Podem ir, Marina, vou ficar conversando com a Brigite. Marina. A baixinha se chamava Marina, e pelo jeito o Billie arrastava uma asa pro seu lado. Brigite amargou uma leve pontada no peito, traída antes mesmo de começar o romance. Sentiu vontade de cantar um tango, mas segurou a onda. Marina saiu sem dizer adeus. O guitarrista pediu outro duplo, e seus dedos buscaram os de Brigite. Quando a noite ameaçava clarear, o guitarrista convidou Brigite a ir com ele para o hotel. No quarto foram-se despindo entre beijos. Ele magrinho, mal cuidado, ela roliça e amorosa, deitaram-se e ficaram alguns instantes abraçados em silêncio, criando intimidade, ela enroscando os dedos nos cabelos do peito do guitarrista, ele... ele... respirando profundamente, dormindo... dormindo! Brigite mal podia acreditar no que estava acontecendo. Na penumbra do quarto um pingo de ouro brilhava nos lábios entreabertos do guitarrista. Brigite saiu da cama com cuidado para não acordar a infelicidade. Vestiu-se no escuro, abriu a porta do quarto e saiu, carregando um sentimento estranho, o sexo e os olhos úmidos de tesão e tristeza. Deu dois passos no corredor e percebeu uma porta que se entreabria. Esperou, e viu a cabeça dourada de Marina, meio sem jeito, uma curiosidade dolorida E aí, como foi? Tudo bem? Brigite ajeitou o tomara-que-caia, sorriu, e colocou só a cabecinha: Menina, nem te conto: um fodão! Lá fora o calor já deixava os cachorros com a língua de fora. Os bêbados amaldiçoavam o sino da igreja. Ao chegar no seu quarto Brigite jogou o vestido numa cadeira, chutou os sapatos pra baixo da cama, e deitou, pensando no único homem da sua vida, loirinho, rechonchudo... * Cigarette Blues, criação de Maria Helena Bandeira. |