OUTRAS TEMPESTADES
Juraci


Acordou no meio de um temporal. A casa de pau-a-pique não tinha estrutura para resistir a mais um. Observou no chão da sala a água que entrava e rápido. Parecia cobra cascavel enfurecida atrás de sua presa. Inundava tudo, o vento soprava furioso contra a porta rota. O olhar do sertanejo piscava assustado. Pressentia que a casa ia desabar. Precisava dela, mesmo sendo memória de casa. Não pretendia abandoná-la, fincara raízes ali. Dera cova enfeitada com cruz de cedro ao pai carpinteiro e a promessa de rezar ave-marias todos os domingos.
O barulho da tempestade mais intenso. O suor escorre frio apesar de sua coragem. Um clarão revestido de vento molhado ilumina o voar de parte do teto. Palhas que parecem aviõezinhos de papel, brinquedos de criança. O vento carrega e espalha seus dias de João-de-barro. Um grito e Pedro lembra do filho deitado no catre do quarto ao lado. Não há muito tempo, abre a caixa empalhada de couro, cravejada de arrebites dourados, apanha uma capa também de couro e cobre o Mateuzinho; corpo e cabeça para escondê-lo do temporal. Apanha o chapéu surrado, veste a carocha – amiga e velha capa de embira de buriti. Muitas noites tecendo carochas para os vizinhos... Um nó bem dado para que a força do vento não a levasse. Movimentos incalculados. Deixam a casa rapidamente para evitar que a madeira roliça lhe caia sobre a cabeça. Confere se o menino está mesmo protegido, sente-o febril. Naquele casebre vivera com o filho de quatro anos. A esposa, insatisfeita com o que a vida lhe oferecia, abandonou o lar. Louca varrida por aventuras, por vida rebuscada. Nem no recém-nascido encontrava alegria.
Pedro vasculha de novo com o olhar na escuridão, a desgraça, percebe mais teto de casa, no terreiro; despede apressado do papagaio e lhe tira a corrente do pé. Dá-lhe a liberdade não procurada, o contrário da esposa que não aceitou aquela vida insípida onde o marido doava sua vida ao campo. Emocionava-se com passarinhos na gaiola, armadilha de arapuca, a desconfiança dos calangos e caçadas nas madrugadas de lua. Casal em crise pai e filho em harmonia. Pedro tentava compensar a falta materna, em nados e mergulhos no riacho, pulava em curvas no ar sob o olhar sorriso infantil. Nadavam para o baixio do córrego e seguiam até a cachoeira mais distante onde nenhum vivente tinha coragem de penetrar. Certa vez, recorda, socorrera um desabusado afoito que enfrentou o desafio.
"Mas isso agora é o de menos, precisamos sair deste vendaval que não passa" – murmura. Caminha em frente, vez em quando olhando pra trás na esperança de mudar o fado triste. Aconchego mais forte ao filho. Um susto: o garoto está trêmulo e com muita febre; apressa-se para o hospital mais próximo. Os relâmpagos clareiam o caminho. De repente, algo estranho, não sente a temperatura do menino ao seu corpo. Pressente que não dá mais tempo. Mateus não tem mais febre, não tem mais pulso, nem vida. Lívido, com sentimento de culpa, nota que não precisa mais se apressar. O seu choro mistura com o das nuvens em tempestade.
Uma meia volta sem esbravejar; fora o destino que mais uma vez pesara a mão sobre si.
Mais tarde, um beijo na testa do filho e outra promessa: "aqui não ficarei mais".
Com este pensamento, desprezando riachos e remansos, calangos e colibris, cobre com terra barrenta o corpo do pequeno Mateus e parte de vez.
Desolado e decepcionado estava pronto para outras tempestades.

 

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