(IM)PERFEITO AMOR
José Luís Nóbrega

Lavou freneticamente o rosto, olhou no espelho e viu a face suja de sangue. Voltou as mãos para a pia, fazendo com que a água límpida escorresse por entre os dedos ruborizados.

Não se lembrava de nada. O cheiro de sangue no banheiro causava-lhe náuseas, e as marcas dos pés deixados naquele chão recém-pintado de vermelho indicava que não havia nascido ali, que não havia se criado ali, mesmo não havendo em sua mente um resquício sequer do passado...

Seguiu vagarosamente as pegadas. Sem se dar conta, pisava com os pés descalços o néctar da vida atirado ao chão. Caminhou até a sala, e ali, avistou uma cena que fez suas vísceras revirarem de pavor. Um homem todo esfaqueado, já sem vida, vestia apenas uma bermuda listrada, cabeça pendida para trás no sofá, copo de cerveja em uma das mãos, controle remoto da TV na outra. Além do cheiro de morte, de sangue, exalava um cheiro forte de cigarro fazendo lembrar lugares fechados, botequins de finais de tarde. Sobre a mesa de centro uma faca de cabo branco, toda ensangüentada, descansava em frente àquele corpo inerte, parecendo ser a atriz principal naquela cena macabra.

Sem entender o que se passava, apanhou a faca, e sem procurar razões presentes ou passadas, sumiu dali para nunca mais voltar.

Alguns anos depois, conhecera um outro homem. O amava, sentindo-se segura em um lar conseguido com muito trabalho. Mas nem tudo era só pétalas naquele relacionamento. Havia também espinhos.

Todas as tardes, depois do trabalho, ele passava pelos bares da vida. Chegava em casa embriagado. Reclamava do tempero, do sal em excesso na salada, indo sempre para a sala assistir TV, sem tocar na comida.

Permanecia ali, sentado, só de bermuda, copo de cerveja em uma das mãos, e na outra o controle da TV que compulsivamente mudava de canal em canal, sem se interessar pela programação de nenhum deles.

Lá na cozinha, em silêncio, ela enxugava a louça do jantar. O cheiro de cigarro vindo da sala denunciava que aquele ser ali estendido havia passado por todos os becos existentes na vida boêmia. Aquele cheiro, a visão do copo de cerveja, a compulsão em mudar os canais da TV não anunciavam uma linda noite de amor pela frente. Não fazia lembrar juras de um amor pretérito, ou a cumplicidade do dia-a-dia. Era estranha aquela sensação. Parecia que suas vísceras reviravam, e quando se sentia assim, sem qualquer razão, sem qualquer lembrança do ontem, ou do agora, abria a gaveta do armário e procurava em meio a todas àquelas tralhas uma faca, de cabo branco, impregnado de manchas escuras que não se distinguia bem o que era. Depois de esfregar o cabo, sem conseguir limpá-lo, ia para o banheiro lavar o rosto, e ali ficava, olhando a água límpida, escorrendo... por entre os dedos.

 

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