A MULHER QUE TOUREIA COLETIVOS
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães

Louca desce o rio imaginário sob os olhares jocosos e perversos dos normais que trafegam pelas margens pavimentadas da avenida.

Embaraçadas as linhas do destino nas mãos crispadas, nas unhas cravadas na carne flácida. Segue incontinente a linha traçada no asfalto desgastado do seu próprio raciocínio.

Meio-dia de fome e pressa - self-serviçe e fast-food. Uns que acendem cigarros e discutem futebol, outros que compram compulsivamente. Estão vivos. Por enquanto. O espetáculo não pode parar.

Alheia, Doida desce a Brigadeiro: quadra por quadra, indiferente às cores dos semáforos, não dá a mínima para o som irritante das buzinas, para o ronco dos motores desregulados dos automóveis, para as risadas zombeteiras dos pedestres.

Descabelada, mantém o passo.

Olhos insanos sem brilho seguindo os “olhos de gato” enfileirados que delimitam um corredor restrito aos coletivos que sobem a avenida. Mantém o ritmo. Transgride. As pernas e os braços finos balançam sincronizados e o ventre à frente arrastando o corpo caricatural.

Se é promessa ninguém sabe. Ninguém quer saber. A cidade está cheia desses personagens excêntricos.

Cena deprimentemente quixotesca: ( Lembra o chinês que encarou de peito aberto a massa blindada dos tanques da Praça da Paz celestial. E sumiu. Ou sumiram com ele).

Doida enfrentando os dinossauros a diesel. Toureando-os.
Vem o primeiro: novo em folha, potente, reluzente e cheio de outdoors coloridos. É o 508j - Avenidas - Circular.

Doida ginga, faz que vai e não vai, dribla, não diminui o passo. Avança determinada na rota de colisão.

O motorista, estressado, joga para esquerda, força para a direita e, na iminência de acertar o alvo móvel, sai pela contramão. E Explode. E Berra palavrões pesados. E assusta as velhinhas que se aglomeram no espaço antes da catraca - espaço estreito demais para a crescente população de aposentados.

Louca e mouca espera. Que venha o próximo.
E o próximo vem lento, arfando, cansado. O 5175 - Jd. Míriam está na sobrevida. Quebrará a suspensão uma hora dessas e deixará os passageiros na mão xingando a prefeitura.

O motorista é paciente. Lerdo até. Está de bem com a vida. Seu time venceu no fim de semana. E ri. E bate papo com os passageiros. E conta piadas das quais só ele acha graça.

Não tem pressa alguma. Não vai tirar o pai da forca. Antes tarde do que nunca, repete com a voz de taquara rachada.

Sem potência para manobras de desvio, o 5175 simplesmente para. E treme como se temesse o espectro que lhe afronta. Sacoleja.

Doida pára à distancia de um passo. Mira a placa desgastada do auto: VX9902- São Paulo - SP. Ri. O riso desdentado de quem perdeu o juízo. E contorna-o.

 

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