FORMAS
Eduardo Prearo

Há uma entrega para ele na fria manhã de outono: rosas vermelhas envoltas num papel azul-marinho. Fica satisfeito, sorri seu sorriso chocho por muitos segundos, mas na certa tudo é um engano. No cartão trivial nenhum nome, apenas três palavras: Deus te ama. O entregador nem deu as caras, bateu cinco vezes na porta e sumiu. Magno pensa em jogar as rosas no lixo. Se as jogasse na areia, as ondas as levariam para uns confins e pronto. Queima o cartão na pia do banheiro, abre a torneira dourada, e as cinzas vão embora pelo cano de meio século. Faz do jarro de liquidificador um vaso e imagina alguém dizendo que isso é cuspir no prato que come. Pensa num suco de rosas; o chá das vermelhas cura paixão. Que besteira! A caligrafia era estranha, meio masculina. Vai até a janela e observa navios, são sempre os mesmos, navios redondos jamais existiriam. Resolve não sair, diz não ao trabalho, o dia acabou. Num sonho vê a si mesmo congelado e com os olhos arregalados para o mal.

Anoitece. A noite negra vem mal-educada e ignorante porque chove e venta. Magno acorda dolorido, comeu galinha frita demais. Não tem conseguido mais ser vegetariano. As rosas desapareceram, o jarro de liquidificador está tão vazio quanto ele. Não foi um delírio; houve uma entrega, houve um cartão, houve rosas, mas e agora? Foi roubo, alguém tinha as chaves dali. Não, sou mais só do que imagino. Abre a porta, corre para a praia e procura alguma alma viva. As ondas estão enormes, as árvores entortam-se com a ventania. Lembra-se então de Maria da Aldeia, como esqueceu ela? Vinha fazer faxina toda quinzena.

- Ah doutor, como amo rosas!

- Essa da gravura esta linda mesmo. Prefiro rosas artificiais. Ou então flores selvagens. Mas não tenho vasos, quebrei-os todos sem querer.

- Trago um lá de casa pro senhor. Eu mesma faço, são de argila. Mas não vai quebrar, hem!

- Ah é? E qual o formato deles?

- Formato de vaso, né doutor! Queria umas rosas, mas são caríssimas por aqui. Então costumo pôr crisântemos ou margaridinhas nos meus vasos. Vou para o além coberta de rosas.

- Que além é esse, Maria?

- Um além, um além sabia?, diz, de repente chorando.

- Maria você está despedida. Não gosto de gente louca na minha casa.

- Louca eu?

- Sim, e ainda por cima varrida. Desinfeta o banheiro com minhas colônias, não limpa nada direito.

- O doutor está me humilhando. Nunca toquei em suas colônias.

- Você não sabe o que é humilhação!

- Um dia o senhor ainda vai acreditar em Deus. Fica aí poluindo o ambiente com seu cigarrinho...

- Fumo com moderação.

- Não existe moderação pra isso.

Os relâmpagos clareiam a encosta. A faxineira está metida nessa história, vai procurá-la. Chega à aldeia por volta das onze da noite. Nas ruelas há algumas pessoas paradas, conversam embaixo de guarda-chuvas velhos, o burburinho é intenso. Segue algumas mulheres na escuridão, malaxado, trêmulo. Uma casa, uma porta aberta, luz de velas, é a casa de Maria. Ela está morta, está num caixão coberta de rosas vermelhas. Aproxima-se do ataúde e fica perplexo. Sente-se um monstro, ajoelha-se no chão e chora. Não há maneira de ser perdoado.

- Perdoa, Maria, perdoa...Nós todos precisamos de luz e calor. Vou sair por aquela entrada e a vida vai continuar. Mas agora será tudo diferente. Estou crendo muito Nele. Tenho tantos defeitos, eu sei. Não ligo para essas críticas que parecem ínfimas porque mais ínfimo é o Amor. Correrei por estas praias desertas lembrando-me do teu semblante.

O Sol vence a madrugada de choro. Magno volta pela praia; há conchas alteradas, rosa, parecendo coração. A rosa vermelha jogada na areia agora flutua, desfeita em pétalas, sobre as águas.

 

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