VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?
Daisy Melo


Resolvi escrever uma crônica. Agendei, então, uma reunião rápida onde estavam presentes, minha mãe, minha avó e eu. Ninguém "louca varrida" obviamente, mas tentávamos achar qualquer situação que pelo menos se parecesse com (coisa absurda) algo que uma "louca varrida" costuma fazer. Imagina: três gerações de brasileiras com descendência (apenas uma gotinha) irlandesa. Absolutamente não somos loucas varridas. Tá.

Depois de horas discutindo (e rindo muito) achamos três histórias:

História no. 1

Meu filho, João Ricardo, devia estar com mais ou menos 10 anos de idade (hoje ele tem 19). A agenda do dia era: dentista na Gávea (para ele) e sessão de análise no Leblon (para mim, mas isso é só um mero detalhe.

Após o dentista, esperávamos o ônibus que ia para o Leblon. João entrou pela frente porque naquela época era a forma máxima de burlar a lei e a ordem. Eu, lógico, passei pela roleta.

Percebi um certo congestionamento na passagem e ouvi, atrás de mim, uma moça dizer:

- Deixa ela passar porque o filhinho dela já entrou pela frente.

Estranhei, me virei com cara de surpresa.

- Seu filhinho não entrou pela frente?

- Entrou sim. Não pude negar.

Paguei a passagem, passei pela roleta, mas minha orelha estava estranha, quente. E quando sentei ao lado do João, abri a bolsa... CADÊ A MINHA CARTEIRA????

Depois, tudo se passou em câmara lenta: levantei e me encaminhei para o fundo do ônibus com as mãos na cintura. Olhei e analisei um por um. Entre mim e os meliantes (eram quatro, não disse, mas eram dois rapazes e duas moças) havia a roleta e uma trocadora que entendeu por bem se passar por despercebida.

Aí, com o dedo em riste e uma cara que não tenho adjetivos para qualificar perguntei:

- ONDE ESTÁ A MINHA CARTEIRA!!!????

-...

- ELA ESTAVA AQUI AGORA. NÃO ESTÁ MAIS! FOI UM DE VOCES (e o dedinho fura-bolos apontava um por um) QUE PEGOU. CADÊ????

Preciso explicar que o ônibus estava vazio. Um ou outro nos assentos. E depois da roleta só os quatro me olhavam embasbacados.

Um deles, discretamente pegou a MINHA carteira do bolso traseiro da calça jeans, jogou-a no chão e disse:

- A senhora deixou cair.

Peguei a carteira, abri e reparei que o dinheiro havia sumido! Ora, eu sabia que tinha uma nota de 500 qualquer coisa (não lembro se era cruzeiro ou cruzado) e mais uns trocados. Então:

- CADÊ O DINHEIRO QUE ESTAVA AQUI?????? EU QUERO O DINHEIRO QUE ESTAVA NA CARTEIRA!!!

O rapaz, muito desconcertado, tirou um bolinho de dinheiro trocado, amassado, do bolso traseiro e me ofereceu. Eu peguei. Foi a deixa para vozes enlouquecidas falarem ao meu ouvido:

1.Voz Angélica: "que bom.. você conseguiu a sua carteira de volta, todos os seus documentos e ainda uns trocadinhos, maravilha!"

2.Voz Diabólica: cadê os 500 que estavam aqui????

3.Minha voz: CADÊ OS 500 QUE ESTAVAM AQUI ????

O rapaz ficou paralisado. Os outros três? Não faço a menor idéia.

Insatisfeita, subi no banco (vazio) ao lado da roleta, e com as mão apoiadas no ferro atrás do assento, fiz menção de pular para o lado de lá. Pularia.

Mas não tive tempo. O rapaz, mais branco que uma tela de Word, me devolveu os tais 500.

Peguei a nota preciosa calmamente, coloquei mais calmamente ainda na carteira, me aprumei e joguei, tal como se joga um "full de ases"(no caso de se saber o que é isso, mas fica bonito), dedo ainda em riste:

- VOCES NÃO SABEM (saboreei o S A B E M) COM QUEM ESTÃO FALANDO!

Claro que eles pensaram que aquela louca varrida era faixa preta de caratê ou a mulher de algum delegado.

Só não voltei rebolando porque a ocasião merecia "cuspir no saco e coçar o chão".

Sentei ao lado do meu filho e, de repente, caiu a ficha:

- Você viu o que eu fiz?

- Vi, mãe.

- E agora? Vamos saltar?

- Pô, demorô!

Enfim, saltamos no ponto seguinte com a maior pose. Vivos.

História no. 2

Toc..toc..toc...era o murmúrio da Marinete, a brasília bege 80 que, junto com metade do apartamento da São Clemente, sobrou do divórcio.

Toc..toc..toc... via avenida Brasil, eu, João com cinco anos e Renato com três (hoje ele tem 17) rumo à Nova Iguaçu, outro município, casa do meu pai, fim de semana, piscina, churrasquinho, cerveja...

Eu percebia, claro, que rapazes passavam por mim gesticulando e eu, no frescor dos 29 anos não dava a mínima - tão pensando o quê?

Até que alguém mais afoito conseguiu gritar:

- SEU CARRO ESTÁ PEGANDO FOGO!!!

Nesse momento olhei para o retrovisor. Saquei que ele não servia só para retocar o batom porque vi a fumaceira que saia da traseira do carro. Ato contínuo, saltei, carregando meus dois filhos.

Parei a avenida Brasil. Chovia fininho e eu chorava caudalosamente, arrasada, um nada.

Abraçada com meus filhos e literalmente sentada na sarjeta, chorava muito enquanto minha Marinete - que me levava ao supermercado e à escola das crianças - pegava fogo.

De repente uma santa loura, gordotinha e sem sapatos (sim, ela tirou os sapatos!) parou e desviou o trânsito (na Avenida Brasil às seis horas da tarde de uma sexta-feira, não é pouco!) Ela gritava: - AJUDEM A MENINA, COITADINHA!! (a menina era eu) ELA ESTÁ COM OS DOIS FILHINHOS!

Do nada, apareceu um carro pipa que apagou o incêndio. E um reboque. E uma boa alma me perguntou se eu queria avisar alguém. Claro, avise ao maledeto do ex, ora! Afinal o carro zero ficou com ele!

Estamos vivos. Graças a aquela louca varrida, que na confusão não consegui saber o nome, mas rezo por ela todas as noites.

A ultima mas, não a derradeira:

Final dos anos 70.

Minha mãe tinha um sítio na região que, não por acaso, escolhi para viver: Guaratiba.

Um dia, ela sonhou com a Lara, nossa cadela fila brasileira. Ligou para o sítio e soube que a bichinha tinha sido atropelada há dois dias. DOIS DIAS! Estava viva, mas gania de dor porque o caseiro que trabalhava no sítio há apenas uma semana, não providenciou ajuda.

Enlouquecida de raiva, minha mãe pegou o carro e rumou para o sítio. Fui junto.

Quando chegamos, ela explicou o plano:

- Vou mandar o cara embora (soubemos, nesse ínterim, que ele era um bandido procurado e tal. Coisa fina) você pega a espingarda, fica atrás da porta da cozinha com ela engatilhada. Se notar que ele está se exaltando, você aparece e atira!

Assim foi feito. Mas não cheguei a atirar.

Passamos a noite sozinhas no sítio, trancadas e montando guarda. No dia seguinte, uma Kombi veio pegar as coisas lá do cara. Detalhe: todos os móveis e utensílios da casa do caseiro eram da minha mãe. E tudo estava dentro da tal Kombi. Ela já irada por conta do sofrimento da cadela, gritou:

- DAISYNHA, PEGA A ESPINGARDA!!!! (Daisynha sou eu, já que minha avó também
é Daisy).

E eu peguei, né? Vai se discutir com uma leonina.

De longe, mirando o cara, eu apontava o coração.

E ela, rainha suprema, ordenava a descida de todos os móveis e utensílios da tal kombi. Não por mesquinharia, eram móveis velhos, mas por causa da Lara.

Não foi fácil. O cara se revoltou. Eu apontava a espingarda. O motorista da Kombi não gostou nada de ter que retirar os móveis. Eu apontava. Em cima do morro, a espingarda mirava a barriga do caseiro. Lá pelo meio da confusão, minha mãe toca no rapaz e percebe que entre pele e camisa, havia uma peixeira.

- ESSA PEIXEIRA TAMBÉM É MINHA!!! Grita a minha mãe. Ela apreende o facão e o tira do contato camisa-pele do bandido. Eu aponto a espingarda. Ela mira o umbigo dele com a ponta afiada e diz:

- VOCE SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO??

Estamos vivas e de volta à região e a favor da campanha do desarmamento. Pena que aquelas armas não existem mais. Ia faturar pelo menos para a cerveja.

Contam também a história, (não acredito) que amassei um Escort no chute, quebrei o vidro lateral, me lancei e voei através dos estilhaços e me coloquei estrategicamente entre volante e motorista. Dizem as bocas de Matilde que agarrei os cabelos da coitada - na época, vastas melenas ruivas - e resgatei um bom chumaço. Falam, que pesou tanto na minha mão que imediatamente joguei fora. Não sei porque sou assim (ou dizem que sou, é tudo muito relativo).

Talvez se deva a minha única gota de sangue irlandês.

E sempre nos resta a frase:

- VOCE SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?

Aí, fica tudo resolvido.

 

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