TORTO
PARA SE VIRAR
Ubirajara Varela
Você já reparou como são estranhos aqueles anúncios de pessoas desaparecidas? Parecem vultos antigos, quase ilustres, quase importantes, estampados em postes, caixas de alimentos, programas sensacionalistas metidos a policiais na televisão, e por aí vai, a lista é grande.
Pois é. No mínimo causa perplexidade. Um destes rostos, em especial, chamou-me a atenção. Estava colado em um poste de luz. Um homem, de mais ou menos trinta e quatro anos, cabelos partidos ao meio, boca torta, nariz torto, uma cicatriz meio torta na maçã do rosto. Ele era bem tortinho mesmo.
Fiquei ali parado, olhando aquela foto, imaginando o que ele faria da vida. Talvez fosse um João-Ninguém, talvez uma pessoa importante. Quem sabe? Colado sobre o poste de concreto, a imagem assumia a dureza fria e distante do material. Quase uma estátua. (É daí a minha teoria de que eles se parecem com pessoas ilustres. Um anônimo ilustre.).
O Tortinho bem que poderia ser um bom chefe de família, trabalhador contratado da empresa de trens urbanos que, talvez por estresse (a vida moderna - dizem - é muito estressante), resolveu pegar o metrô rumo a lugar nenhum e sumir, sem deixar vestígios. Confesso: eu mesmo já tive essa idéia pelo menos uma vez na vida. Acho que todo mundo já teve. Mas, para sorte ou azar, sei lá, foi apenas uma vontade passageira. Não tivemos coragem de cobrir a banca. Opção por não virar uma estátua de concreto.
Mas e o Tortinho? Continuo pensando... Será que ele foi abduzido por alienígenas e hoje é estudado numa constelação a milhões de anos-luz daqui? Viajei, né?! Culpa de um programa que vi na tevê, faz alguns dias, sobre Ufologia.
Tentei olhar bem no fundo dos olhos do Tortinho, e não consegui. Era um Tortinho bem misterioso. Tentei me virar um pouco, mas também não deu pra perceber nada que me revelasse quem era aquela pessoa. Quase consegui um torcicolo.
Bem que ele poderia ter duas famílias. Já vi casos em que uma puladinha de cerca vira um filho inesperado, e o sujeito tem que assumir. Fazer o quê? Isso mesmo. É bem provável. Aí perdeu o emprego, sentiu-se humilhado, ficou sem como poder voltar a encará-las de frente e fugiu.
Estava bem entretido com os meus pensamentos, quando senti alguém me cutucando nos ombros. Virei-me, era um rapazinho com um cachorro de coleira.
-Está passando bem, moço? Precisa de alguma coisa?
-Não, está tudo bem.
-Tem certeza?
-Tenho.
-Estou só olhando esse sujeito. - Apontei para o cartaz.
-Ah. Esse daí? É o Franco. Era meu vizinho de porta. Morava ali naquele prédio. Sumiu há uns seis meses. Deixou pra trás este cachorro e um tanto de contas sem pagar. As contas estão lá até hoje. Só aumentando. O cachorro, eu fiquei com ele. Dizem que cansou de ficar sozinho e foi procurar pelos seus familiares. Uma tal de árvore genealógica, sabe? Rever as suas raízes...
-É. Todos temos as nossas raízes.
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