AS RUAS DA MINHA ALDEIA
Raymundo Silveira

 

“Casas, ruas e almas
sucumbem à desolação
das tardes enfumaçadas.”

(Carlos Drummond de Andrade: Desolação)

Não me recordo desde quando deixei de ser neutro para tomar partido contra a idéia de se batizar ruas com nomes de pessoas, quer ainda estivessem vivas ou mesmo que já tivessem partido para o país do nunca mais, com passagem só de ida. Certamente, a memória dos grandes vultos da nossa história deve ser preservada, porém há mil e uma maneiras de se fazer isto sem comprometer a tradição dos nossos antepassados que conheciam os seus logradouros através de originais e lindas denominações, com a vantagem de não incorrer no despropósito de prestar homenagens imerecidas – algumas até mesmo ridículas - apenas para satisfazer interesses particulares mútuos entre homenageantes e homenageados, alguns dos quais “ilustres desconhecidos” da população e dos seus pósteros.

Hoje estive recordando os nomes das ruas da minha aldeia, começando por aquelas onde residi durante os primórdios da minha interinidade neste planeta. Nasci na Rua do Tamanduá. Aliás, a rua do Tamanduá propriamente dita ficava um pouco mais para levante e era constituída por um diminuto renque de casas de taipa sem qualquer sistema de drenagem, instalações sanitárias, ou sequer uma mísera calçada; porém havia outras ruas próximas, apenas um pouco mais diferenciadas, pois pelo menos obedeciam ao traçado convencional de vias públicas, as suas construções eram de alvenaria, mas integravam um conjunto residencial que também se convencionou chamar Rua do Tamanduá da qual não falarei nada além disto que acabei de dizer, pois se fosse contar tudo o que sei sobre ela, teria de escrever um livro mais volumoso do que a Bíblia e talvez não ficasse muito longe de ser tão sagrado e consagrado quanto ela. A Rua do Tamanduá, reconhecida neste contexto latu sensu, era uma das principais da minha cidade. Saudade.

Morei também na Rua da Palma da qual igualmente guardo preciosas recordações. Era perpendicular à Rua do Perdoe, começava quase rente aos trilhos da estrada de ferro, subia para leste e após se estender por cerca de um quilômetro e meio, terminava na Rua do Sangue. Devo dizer agora que talvez por negligência ou carência de oportunidade ou de dados concretos, nunca soube o porquê destas denominações. Quando era criança, a Rua do Sangue, por exemplo, me infundia tanto medo a ponto de evitar passar por perto dela sempre que podia, pois a palavra sangue me trazia associações livres e espontâneas apenas com o derramamento daquele líquido, cuja graça de batismo me ensinaram erroneamente a chamar de morragia e só mais tarde aprendi que, de fato, tratava-se de hemorragia e eu achava que era precisamente o que estava sempre acontecendo por lá.

Foi na Rua da Palma onde vivi dos meus dez aos dezesseis anos, portanto no auge da puberdade e onde fui conhecer as primeiras notas daquela bendita sinfonia da natureza a que costumam chamar de amor. Foi lá onde ganhei e retribuí meu primeiro beijo na boca; onde o meu corpo experimentou as primeiras vibrações alucinantes do contato da minha pele com a epiderme macia e sedosa de uma jovem mulher; onde começou a jorrar de dentro das minhas entranhas as cascatas cristalinas dos humores sensuais e onde também sofri pela vez primeira as agruras das tristezas que as paixões sempre carregam consigo para servir em forma de sobremesa de jiló, depois dos acepipes do banquete de Eros.

Mais tarde me mudei para a Volta da Cuia. Quanto arrependimento sinto agora por nunca ter me interessado em investigar a origem daquele nome, meu Deus! O consolo que me resta é o de jamais haver morado em “voltas do prefeito fulano”, em idas do vereador sicrano ou em ficadas do deputado beltrano. Não! Eu tenho orgulho de dizer: morei na Volta da Cuia. Do mesmo modo como também me sentiria muito vaidoso se tivesse habitado na Cartuxa - embora ela nunca tenha sido a de Parma, de Sthendal -, na Praça da Estação, na Baixa - a que os irreverentes acrescentavam, da égua -, na Rua Sete, no Alto do Bode, nos Mocós, na Rua Nova, no Alto da Cadeia e, podem acreditar, até mesmo na Rua das Madalenas, onde ficava a putada - rua com nome de gente, portanto -, mas esta pelo menos tinha nome de MULHER.

 

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