O GRITO DOS PEIXES
Luís Valise

 
 

“Sou sua admiradora, mas não sei nada a seu respeito. Por exemplo, sua altura, a cor dos seus cabelos, onde você mora, se você fuma, sua bebida predileta, coisas assim. Já li todos os seus romances, e me identifico muito com suas heroínas, que são sempre do tipo mignon e têm cabelos curtos. Embora não seja exatamente baixinha, uso meus cabelos bem curtinhos em sua homenagem. Aguardo ansiosa sua resposta.
Paula, paulista, 22 anos.”

Raramente recebo mensagens dos leitores, e minha primeira sensação é de júbilo. Depois, à medida em que leio e releio o e-mail vou ficando deprimido, até ser tomado por grande tristeza. A saudade da mulher que teima aparecer em tudo que eu escrevo invade o fim de tarde, por isso resolvo sair de casa antes que a coisa piore. Rumo instintivamente para a beira da praia e vou caminhando na direção do Overdose. O bar está vazio. O barman deve ter reparado nos meus ombros caídos, e manda um uísque com gelo e club-soda. Se o primeiro gole não afasta a saudade dela, pelo menos traz a cor morena dos seus olhos, que amor é coisa que não passa, não tem cura, capaz de ficar quieto num canto do peito como uma baleia submersa, até que uma palavra, uma música ou um anjo descuidado acorde o imenso cachalote. Aí, então, ele emerge espadanando as águas quentes da paixão, e não há outra solução que não pedir outro uísque, e soçobrar abraçado à irremediável solidão.

Alguém toca no meu ombro e eu desperto. É o garçom, com seu sorriso de psicanalista amador: “Doutor, por hoje chega.” A conta estendida mostra um número de doses acima da média. Pago a conta, e vou andando meio inclinado, o lado esquerdo vergado sob o peso do coração do grande peixe.

Eu só gosto um pouquinho menos dela quando bate a ressaca, que hoje está de amargar. O chuveiro frio faz bem. Ponho roupas velhas e folgadas, preparo um sanduíche de queijo e abro uma cerveja preta. Aos poucos a visão clareia, e os sapos param de brigar no pântano do estômago. Ligo o computador para ver as notícias. “Morre o ator Marlon Brando”. As bochechas salientes do velho carcamano surgem à minha frente. Alguma coisa, lá no fundo, avisa que meu tempo também está chegando. Abro o e-mail na eterna esperança de ver sua mensagem me pedindo pra voltar. Nenhuma mensagem. Desta vez foi pra valer. Não me acostumo com a idéia. Sem ela nada faz sentido. Se eu fosse Don Corleone mandaria busca-la manu militari. Doppo, un baccio in bocca, doppo... Doppo vejo a mensagem da Paula, paulista, 22 anos. Resolvo responder sem enfeitar o pavão: se estou desiludido por que não desiludir também? Digo a altura, a idade, o peso, tudo, tudo de verdade, foda-se, procure outro mais novo, mais leve, mais vivo. Invento uma marca de charutos, escolho um uísque de segunda, e no fim, polidamente, agradeço.

No meio da tarde troco de roupas e vou à editora receber adiantamento por um novo livro. Como pode alguém comprar os lixos que escrevo? Quanta gente carente, meu Deus, basta inventar uma mulher bonita (inventar não, vocês me entendem), um homem com traços viris, uma história em que tudo dá certo no começo, complica no meio e volta a dar certo no final, ou seja, tudo o que não acontece na vida, e todos correm comprar e mergulhar na mentira.

De volta a casa, preparo o esboço do novo livro: a história se passará na Irlanda. Uma casa de tijolos com flores nos beirais, rodeada por um muro de pedras, em meio a um grande descampado, ou uma charneca, seja lá o que isso queira dizer. A mocinha se chamará Anita, será miúda, com olhos da cor dos seixos do mediterrâneo, e terá cabelos curtos. O mocinho será... como será? Enquanto penso, um sinal no computador avisa que chegou mensagem. Largo o que estou fazendo e corro para ver se desta vez é ela. Não é.

“Amigo (posso chamá-lo assim?), adorei sua resposta. Você é exatamente como eu imaginava. Tenho um pedido a fazer, e sei que serei atendida: gostaria de ter seu autógrafo nos seus (meus) livros. Você não me negará essa honra, não é? Então me diga seu endereço, quando e a que horas eu posso passar aí com os livros. Por favor, não me leve a mal.
Paula.”

E agora? Como saio dessa? Que saco! Que cara-de-pau! E mentirosa, acima de tudo: “... exatamente como eu imaginava.” Porra, será que todos me imaginam escroto desse jeito? Bom, pelo menos ela sentiu que eu não dou mole. Melhor voltar ao trabalho.

Termino o esboço tarde da noite. Corto um pedaço de queijo e abro uma cerveja preta pra chamar o sono. Ao desligar o micro dou com a mensagem esperando resposta. A visita deve ser curta, por isso marco para segunda-feira. Três da tarde.

No fim de semana dá praia. Não sou muito disso, mas resolvo andar na areia em busca de personagens, e reparo que as mulheres parecem mais novas, e seus biquínis, menores. Sorrio, o que é raro. Volto para casa e entrego-me ao trabalho.

Na segunda, lá pelas três da tarde, toca o interfone, é o porteiro avisando que uma garota quer subir. Seu nome é Paula. Me dou conta do compromisso, passo a mão no rosto, a barba está crescida, o cabelo despenteado, peço para ela esperar alguns minutos.

Quando a porta se abre, vejo a garota. Paula, paulista, 22 anos, quase mignon, cabelos curtos, olhos de guaxinim, pele morena, boca vermelha... Eu não esperava por isso. Ainda bem que estou banhado, barbeado, penteado, perfumado, “entre, por favor, fique à vontade, a casa é sua, não repare, homem sozinho faz uma bagunça!...” estendo a mão “muito prazer, Paula, vamos entrando”. Ela entra tímida, olha os quadros nas paredes, o micro ligado, as revistas espalhadas sobre a mesinha de centro. Aperta quatro livros contra o peito. Eu indico o sofá. Ela se senta. A saia é curta, as coxas surgem, curiosas. Ela estende os livros “não quero tomar seu tempo”. Eu pego os livros, e reparo que seus olhos se movem rápidos como peixinhos de aquário. Ela vê um bloco cheio de rabiscos, anotações, flechas, pergunta o que é, eu conto do novo livro. Ela pergunta o nome da mocinha, eu minto “Paula”, ela abaixa o olhar e suas faces ficam vermelhas. Eu minto mais, e pego sua mão. Torno a mentir, e beijo seus lábios. Minto, e minto, e minto, até que o cair da noite encontra-nos na cama, ela nua e linda, eu nu e cansado, abraçados e em silêncio. “Preciso ir”, ela diz, “precisa, sim”, eu concordo. Eu a olho enquanto ela se veste. Ao sair, ela confere os autógrafos, e agradece. Eu falo a verdade: “você estará no meu próximo livro”.

Da janela eu acompanho-a com o olhar, até ela sumir na esquina. Não costumo beber às segundas, mas hoje é um dia especial. Visto-me e sigo em direção ao Overdose, o passo apressado, antes que a baleia surja lá do fundo, com raiz e tudo, rasgando meu peito em busca de ar...

 
 

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