MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
Leila Silva

 

Solange acorda assustada e, na escuridão do quarto, tenta achar o interruptor do abat-jour ao lado da cama. Pesadelos de novo? Entretanto não se lembrava de nada. O caso é que agora ia ser difícil pegar no sono outra vez. Melhor se levantar e preparar um chá. Sem cafeína, que fique claro, dona Solange. Dona, que engraçado. Um dia chegou ao Brasil e, já no aeroporto, foi um tal de dona e senhora que ela estranhou. Caramba, será que envelheci tanto assim ou foram os hábitos que mudaram por aqui? Pensou. Um saco aquela história de ‘A senhora podia preencher aqui esse papel?’ ‘A senhora quer açúcar ou adoçante?’ Às vezes se perguntava se era com ela mesma. Preferia mil vezes o ‘você’ ou ‘tu’ ainda que com o verbo mal conjugado.

Quando deixou o seu país e a ditadura, ainda era chamada de ‘menina’ apesar das responsabilidades, pensa enquanto estica os braços diante de uma foto sua pregada na parede do pequeno apartamento no centro de Bruxelas. Um amigo fotógrafo a surpreendera num momento de tranquilidade atrás da cortina de fumaça. Nem gostava de pensar que um dia fora fumante e, se não fosse pela suavidade que o fotógrafo conseguira captar, teria escondido aquela foto dos olhares dos amigos. A foto era tão boa em seu conjunto, inclusive a fumaça, que decidiu deixá-la ali. Enfim, não se pode apagar o passado. Percebeu, com surpresa, que quando a foto foi tirada ela estava usando uma bata branca com bordados. A mesma bata branca com a qual chegara ali naquele aeroporto sem saber em que parte do mundo se encontrava, custando a acreditar quando lhe disseram que estava livre. Livre? Olhava para os lados desconfiada, pensando que aquilo podia ser mais uma das tantas que os militares gostavam de aprontar. Mas não
era, estava livre. Livre, livre, livre. Agora era só aprender uma língua estrangeira, aprender a suportar o frio, aprender a viver só, aprender a ser outra.

Nunca tinha reparado nisso antes. A mesma bata. Mas não era engraçado isso? Podia jurar que era essa bata que estava usando no dia em que fora levada para o primeiro interrogatório. Interrogatório! Pronuncia a palavra com um sorriso amargo. Até ela já estava se traindo pois aquilo nunca tinha sido um interrogatório. Do que o tempo não era capaz. Mas não podia ser a mesma bata porque senão ela não estaria ali naquela foto que foi tirada muito tempo depois, quando já estava na Bélgica. Estava certamente confundindo os fatos que, confusos, deixam de ser fatos.

Precisava, um dia, botar as memórias no papel antes que fosse tarde demais, antes que a demência apontasse mas, há quinze anos estava a dizer isso a si mesma, que precisava trabalhar a memória e registrar- ou registar como quer o Saramago- o que vivera. Pouco importa o verbo, ou melhor, o verbo importa muito contudo, nada saía dessa cachola. Sair saía mas nunca ia para o papel, só servia para impedir o seu sono. Rabiscara alguns poemas, era verdade, e até publicara um aqui outro ali, mas nada de fatos. Lá vem de novo esse sinal cerebral insistindo com a palavra ‘fatos’. O que eram os fatos afinal? O fato, agora, era aquela foto que mostrava a bata branca que não deveria estar ali. O mais provável é que naquele dia estivesse usando uma roupa da prisão. Ou roupa nenhuma.

Porque é que acordara assim no meio da noite? E tão terrível a noite. Durante o dia dá-se um jeito mas à noite... A noite todos os gatos são pardos, dizem. Na prisão os gatos eram pardos durante o dia também, até porque, às vezes nem sabia quando era noite e quando era dia. Merda, tinha que evitar esse malabarismo mental, caso contrário não voltaria a dormir e seria torturada pelas lembranças por umas cinco horas ou mais. Que horas seriam, afinal? Vamos tentar um chá de camomila. Chá de camomila para um sono tranqüilo. Será que a camomila ajudava também a botar ordem nas idéias? Outro método antigo era contar carneirinhos mas nunca funcionara com ela. Desenvolvera uma tática pessoal que consistia em tentar se lembrar das orações. ‘Ave Maria, cheia de graca, o senhor é convosco...’ Enquanto tentava achar a sequência o cerébro permanecia ocupado, nem sempre voltava a dormir mas, às vezes, conseguia redirecionar o foco da memória. Impossível imitar a paixão da avó quando rezava a Ave
Maria. Lembrava-se dela tirando o terço com as outras velhas. Que tédio as noites de novena, uma ladainha interminável. E para que servira todo aquele teatro? Quando precisou de Deus, onde ele estava? Em lugar nenhum, então chegou à mesma conclusão que muitos dos companheiros, ele só podia não existir. Não existia e vamos à luta. Cada dia uma batalha, uma batalha solitária e anônima. Não haverá heróis e muito menos heroínas.

Que destino levara aquela bata branca? Se pergunta olhando de novo para a foto. Deve ter ficado perdida no caminho. Num dos caminhos. Talvez a tenha deixado na casa da mãe e ela a tenha usado para limpar o fogão. As vezes cortava as roupas velhas e as transformava em pano de limpar poeira, de limpar o chão, o fogão. Enfim, não tinha importância, fazia tanto tempo. A mãe não podia imaginar quanta história aquele trapo carregava. Aliás, a mãe não sabia da missa um terço. Até hoje achava que Solange era uma criadora de casos, que as amizades a tinham corrompido e levado ao desastre. Quando algum companheiro ousava vir à sua casa era obrigado a ouvir o sermão da mãe e quando ele se ia ela, Solange, tinha que ouvir críticas ao seu modo de vestir, de falar, de andar. A velha era fogo mas Solange não tentava argumentar ou explicar. Era como se vivessem em dois planetas diferentes. Abre a gaveta e procura uma foto. Lá está ela com o seu ar severo, parece a Bernarda Alba. Ai mamacita, se
você soubesse...se soubesse teria me amarrado à cama, à mesa, trancado o quarto e engolido a chave. Mas ‘não se pode encontrar a paz evitando a vida’, não é mesmo? Mamãe eu estou tão cansada, estou tão cansada que estou aqui conversando com a sua foto. Eu estou tão cansada e o meu chá de camomila não fez efeito. Nem vou dizer que vou me resignar e esperar o dia raiar porque aqui não haverá muitos raios, ele vai chegar discretamente. Os ruídos dos carros e das portas é que vão me dizer que o dia chegou. Claro, tenho também um relógio e agora ele está mostrando quatro horas e trinta e seis minutos.

Solange toma mais uma chícara de chá, senta-se à mesa, pega um bloco de papel, uma caneta e se põe a escrever. Escreve incansavelmente entre xícaras de chá e lágrimas. Primeira carta destinada à mãe, que ela não se preocupe, ela está muito bem e que tente compreender que, embora já possa legalmente voltar para o Brasil, emocionalmente ainda não pode. Ela, a mãe, era testemunha de que ela, Solange, tentara mas aquele país já não era mais o seu ou ela já não era mais ela. Alguma coisa tinha acontecido, muitas coisas tinham acontecido...Por acaso eu deixei aí uma bata branca muito velha? Mas não se preocupe, está realmente muito velha e fora de moda, eu só queria saber. Abraço a todos com muito carinho e peça que me enviem notícias. Telefonarei logo que puder.

Quando termina de escrever a última carta ela pega os envelopes, escreve os endereços, dobra as folhas, coloca cada carta no respectivo envelope, prega os selos e ouve o primeiro motor passar na rua. Veste uma calça jeans por cima do pijama, coloca duas meias, pega o seu pesado casaco e vai até a caixa do correio onde deposita as cartas. A neve caía e ela tinha esquecido as luvas e o gorro. Corre até a padaria: ‘Bonjour Monsieur, une baguette s’il vous plaît!’



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