A AVÓ DA MINHA
INFÂNCIA
Eduardo Selga
O ponteiro do velocímetro conhece bem o tamanho desta dor íntima, que me digere aos poucos após ter cravado os maxilares na carne de minha alma indefesa: mantem-se estacionado nos oitenta; no rádio, violões com recheio de flauta choram um chorinho antigo no sabor e parece que este sofrimento começou hoje e não há dias atrás, por acaso; quantos quilômetros eu e os pneus já engolimos? Muitos, mas é indiferente... parece ainda não saí do cemitério, nem mesmo venci os limites da cidade; faróis aos pares, ferozes, passam por mim em sentido contrário, numa pressa que é um desespero só. Quantos motivos existem incontestáveis o suficiente para entender tanta vontade de chegar aonde quer que seja? Boa parte dos meus, perdi. Desvio a pouca atenção para a esquerda, e no céu de luto algum artista plástico desenhou uma lua gigantesca. Com todos os contornos do vulto de Jorge e seu dragão do Mal. Está a rir de minha indigência afetiva, ela, ou através do suas palavras simbólicas e poéticas tenta acenar solidariedade, ao seguir-me a cada pedaço de chão? Pouco importa, se em ambos os casos a estrada desconserta-se em ondulações à minha frente: lágrimas afogam-me os olhos outra vez. Outra vez as mesmas lembranças.
Vovó, como fora batizada pela água benta do carinho oferecido pelos moradores daquele antigo bairro onde minha infância nasceu, foi uma personalidade ímpar para mim, menino, e para mim, adolescente. Sempre caminhando a passos miudinhos, como fosse uma pressa mentirosa, falando sozinha, cabeça baixa porque olhos sempre à procura de tudo porque quase nada das coisas habitantes do chão, para ela um Universo deitado, a interessava. Muito embora, às vezes, encontrasse uma qualquer bobagem e aí era como houvesse garimpado alguma pedra preciosa: dançava sozinha nas calçadas e ruas, velha porta-bandeira sem mestre-sala. Também isso foi responsável por ela morar em meu coração. Talvez fosse um pouco bruxa e nem percebesse. Mas sabia do encantamento para a vida toda que lançou sobre mim.
Sempre nada por fazer, persistia em seus descaminhos pelas ruas. Estatura abaixo da média, um tanto corcunda, mais negra que a própria miséria congênita em que estava mergulhada. Xale tão puído que os meninos brincávamos ser do tempo da Lei Áurea, só mesmo para vê-la encenar sem convicção que estava era muito da braba conosco. Os cabelos (alguém os sabia brancos?) ocultos sob lenço amarrado à portuguesa. Nenhum dente para tanto sorriso generoso. A torto, a direito. Distribuído indistintamente, sem sovinice, a qualquer um que a cumprimentasse. Calçando os pés, sandálias franciscanas e meias que subiam aos joelhos. Numa das mãos, bengala sem préstimo: perambulava com igual desenvoltura sem a escora, e nunca foi arma contra ninguém. Como fosse objeto cênico, pelo qual era apaixonada da mesma maneira peculiar como certos idosos se apegam a relíquias pessoais. À época, menino, era-me impossível entender. Tudo aquilo não passava de mais um detalhe divertido e original.
Quando a fome rugia-lhe alto, leão solto e indomado, jamais esmolava um prato de comida por amor a Jesus. Não senhor! De jeito maneira! Batia à porta de alguma residência cuidadosamente selecionada, quer fosse pelo seu apurado sexto sentido, quer fosse conhecimento do tipo de família que a casa escondia. Toda sorrisos e timidez, perguntava na maior das intimidades, como se amigos fossem desde sempre: "E então? Qual prato gostoso haveremos de saborear hoje?" Quase ninguém se recusava a calar a boca da fome duma velhinha tão vovó, tão carismática. Os que em seu íntimo davam guarida ao vírus da solidão (e em mim, naquela época, meu espírito já estava semente do que é hoje: janela sem jardineira, casarão sem crianças brincando de correr), os muito solitários até bendiziam sua presença sem aviso ou convite, suas estórias incoerentes, sua cultura autodidata que conhecia um tantinho de quase tudo, o vasto vocabulário em geral utilizado anarquicamente nas construções frasais, um irrevogável horror aos palavrões (as almas penadas da língua portuguesa, afirmava muito categórica ao ouvir alguém perto dela vomitar algum impropério). E sempre a insistência em lavar toda a louça da refeição, cantarolando músicas nagô. Lindíssimas, bem me lembro. Na verdade, sentia-se mesmo aviltada não a deixassem doar-se com semelhante gesto em troca da fome extinta.
Houve um tempo naqueles tempos em que ninguém morria assassinado, ninguém homicida. Por isso, nos dias em que a rotina da delegacia local ainda mais tediosa do que o suportável, vovó, a imagem da felicidade por estar viva, entrava sem pedir permissão, abraçava todos os policiais como filhos. Que um deles lhe servisse xícara de café amargoso. Palavras mansas, modos frágeis, "como vai essa coragem, Seu Doutor Delegado?" E jogavam vinte e um usando baralhos desonestos que ela trazia sempre amarrados à barra da saia. Mas quase não tinha graça: adiposo e lento no raciocínio, o homem era por demais obtuso. Eis o motivo pelo qual divertia-se melhor ao trocar idéias arejadas com os poucos presidiários e recitar-lhes alguns poetas de quase todas as escolas literárias brasileiras, sem fazer uso da voz impostada, da falta de naturalidade típica duma interpretação amadora: antes a poesia dita em tom de prosa. Assunto emendava assunto, um mundo inteiro era percorrido por eles no interminável rio de onde brotam afluentes que é a palavra quando foge língua afora. No fim, enorme colcha cerzida com todos os sem liberdade estava composta por vários trapos coloridos: política, família, amores, filhos, morte, Deus. Não que pretendesse evangelizar ou converter os homens, porém enxergava nos Salmos um perfume especial. Sabia-o de cor, praticamente. Quando algum deles pedia, no rosto a expressão neto pedindo à avó fizesse aquele doce fora do comum, o gesto era invariável: buscava o fôlego, olhos fixos numa Escrava Anastácia colada na parede da cela porque assim conseguia recordar-se com precisão dos trechos. E silêncio. Emoção regando o canto dos olhos. Em seguida, duas ou três passagens como que aromatizava o ambiente. Não raro, todos eles se emocionavam. Algum sentia o espírito leve, algodão, alado, veleiro em oceano sonolento. Ato contínuo, riam-se desenfreados, nunca na vida felicíssimos por existirem, planos para um futuro que certamente viria melhor. Pelanca retomaria sua quarta série; Caolho jurava encontrar a mãe tão abandonada quanto acompanhada pelo fogo-selvagem; Ponto-Quarenta lutaria pela vereança só para apresentar projeto que florisse as ruas. Quando saía, deixava saudades nos corações prisioneiros. Ao ir embora, adeus meninos, dizia sempre ao delegado: "Doutor, nas próximas semanas vou trazer quindins para os rapazes. Já fazem por merecer".
Os invernos na minha infância eram anêmicos. Soprava um ar seco e até friozinho, porém quase nunca chovia de verdade. Digo chover aquelas chuvas adultas, águas pesadas sobre as telhas francesas, vendaval descabelando as árvores; digo enxurrada que transformasse as ruas em leitos de rios nervosos e os bueiros, sedentos, bebessem. Mas qual! Minha infância podia contar nos dedos as vezes em que testemunhou casas aborrecidas por causa de infiltrações nas paredes, moradores alvoroçados com panelas e bacias para fazer a colheita das goteiras. Também quase não via, minha infância, pessoas imóveis sob marquises aguardando a chuva cansar de cair. Nem entrincheiradas nos cobertores, procurando o mínimo de movimento com o corpo para não desarvorar o oxigênio gelado em torno, verdadeira lâmina ossos adentro. Nada disso! Tudo o que tínhamos era uma ventarola muito mixuruca. Jamais minha infância e eu conseguimos construir, como nos filmes vespertinos e mal dublados da tevê, bonecos de neve. O que causava certa frustração com as nuvens. Muito incompetentes, elas.
Vovó, contudo, não me decepcionava: sentia a friagem que, conseguisse eu roubar as torneiras de São Pedro, todos sentiriam. Mas ela fazia questão de sentir, ainda que o frio inexistisse. Ainda que fosse com exclusivo intuito de justificar a existência daquela estação do ano. E próxima à carcaça do antigo Maverick, dentro do qual dormia suas noites, preparava gravetos (madeirazinhas, quase lenha) para dar luz à fogueira noturna. Esfregava as mãos. Tudo isso atraía os meninos (as meninas também, mas sempre foram um tanto medrosas), a bisbilhotice inseparável da infância. Ela fazia uso do momento, meio mágico, para encarar muito fixamente em nossos olhinhos. Todos atentos. A maioria de nós achávamos que na verdade toda a preparação era um ritual nas entrelinhas, uma magia oculta em andamento. Ria-se, cândida, de nossa certeza infantil. Aproveitava a atmosfera impregnada de misticismo para contar, maestrina, belos contos povoados com trinta e sete assombrações por centímetro quadrado de estória. Mergulhávamos narrativa adentro por todas as portas e janelas que se iam abrindo. Fazíamos visitas temerosas a cemitérios, becos escuros, ruínas... O fogo crepitava. Onde o frio mesmo? Vez por outra um de nós (eu? Nunca) lançava mão duma desculpa amarrotada para justificar o medo e saía. Mas retornava poucas luas seguintes, a mesma curiosidade acessa. Encerrado o desenovelar do enredo, era como tivéssemos ido a outro mundo composto por outras substâncias, lá estado por um tempo... um tempo... quanto tempo mesmo? Balão cheio de cor, sua narrativa era asas pousando tranqüila no céu da minha alma. Com certeza cresci. Ao redor do fogo e da ficção. Certa vez pus algemas naquela timidez que me sufocava e perguntei, no meio de todos, entre medo e respeito, se acendia a fogueira apenas para espantar o frio, invariavelmente ralo, ou se por gosto mesmo.
- É Deus, meu menino de Deus...
- Como assim?
- Assim: quando sentamos perto das chamas, Ele, que está sempre aqui dentro de nós, se acende. Mas atenção: apenas nos invernos mais rigorosos a gente entende melhor o quanto Deus nos alumia e aquece.
Ainda hoje permanecem as dúvidas se consegui entender exatamente o que pretendeu com tais palavras ditas em sussurro, como um segredo, como uma brisa que vem de surpresa e chuac! Beijo no rosto.
Falta-me a vontade de continuar viagem, retornar à cidade onde construí minha vida acadêmica e leciono Jornalismo para muitos indigentes intelectuais e poucos até promissores, se de fato quiserem comprometer-se a explicar os porquês das coisas. Logo ali, quinhentos metros pouco mais ou menos, um posto de gasolina onde é possível um descanso razoável, jantar qualquer coisa. Reviver à exaustão a cena: talvez o mais boçal dos meus universitários disse-me, sem suspeitar da eloqüência com que a notícia gritaria em mim, sobre uma engraçadíssima nota de jornal com ares folclóricos que informava a morte no Estado vizinho duma velha caduca cuja excentricidade havia exercido influência em várias gerações jovens do bairro onde viveu. Um texto hilário, professor, acentuando muito bem os aspectos evidentemente ridículos. O senhor deveria ter lido. Mas, difícil... o jornal é caduco também: pelo menos seis meses de velhice. Bom esse trocadilho... certo, professor? Querendo, posso trazer o jornal para a aula de amanhã... Lembro-me muito bem da colisão com a notícia. O impacto. Os destroços. Eu em caquinhos espalhados. Sim, porque a principal artífice da infância que vivi já não existia. Embora imortal para sempre. Só mais quinhentos metros. Preciso repouso, trazer à memória o vocabulário do Céu e orar em silêncio, e chorar em silêncio as lágrimas espontâneas. Necessárias. E outra vez a memória vindo à tona: o retorno ao bairro onde cresci, para descobrir-lhe o túmulo e visitá-la, há dois dias atrás... Essas imagens se mostram num tempo presente, como estivessem acontecendo aqui em torno. Agora. Outra vez. O que vi nas ruas do lugar e no cemitério é um relógio morto, não caminha. Como pode uma pessoa povoar o imaginário de outra assim, Deus, pelo resto da vida? O passado é presente.
Há um desejo contraditório que me acompanha os passos enquanto passeio atento por estas ruas do meu antigamente: protelar ao máximo a visita ao cemitério, embora esse o motivo pelo qual viajei quilômetros. Um receio descabido, um frio na espinha. Triste ver as ruas desvirginadas pelo "progresso", sem aquela inocência da geometria mais ou menos caótica dos paralelepípedos. As casas, as mesmas que um dia deram de comer à vovó, alguém as transformou em edifícios monstrengos, desenhados com traços lineares e simetricamente angustiantes. Néons, monóxidos, decibéis, gente que não mais se conversa nas esquinas. Igual à cidade onde vivo e morro todos os dias um pouco. O bairro onde fui menino também morreu, não é mais lugar para uma infância crescer amadurecendo degrau a degrau, sadia. Triste. Por isso ela foi embora, nem tanto pela idade octagenária... Seu tempo passou, foi substituído por outro mais frio e sem fogueiras de inverno. Nem percebo e já estou dentro do cemitério. Estremeço. Por onde iniciar a busca?
- Olhe para frente.
- O quê? Mas quem...
- Em linha reta, terceira tumba.
- Vovó? Mas a senhora...
_ Morri? É o que dizem, mas não dê ouvidos a tudo o que esse povo diz. Pelos cotovelos. Falemos de felicidades, é melhor. Conseguiu?
- Consegui o quê?
- Acender sua necessária fogueira. Tanto tempo passou...
- Engraçado... não sei dizer. Talvez sim.
- Você
está tremendo muito, menino. Não conhece mais minha voz? Daqui
a pouco o sino da igrejinha vai badalar as seis horas da noite. Hora de friagem,
lembra-se? Estou preparando a fogueira, gostaria que participasse
das estórias.
- Mas...
- Fixe bem os olhos para frente. Atenção. Queira enxergar. Assim. Está vendo o bom e velho Maverick, com certeza. Dentro dele um vulto. Sou eu. Daqui a pouco alguns daqueles amigos de infância que já não estão mais aqui estarão aqui. Espere para matar essas saudades.
O posto de gasolina, finalmente. Melhor uma boa janta, um sono. Amanhã estarei melhor. Desligar o chorinho do rádio.
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