COMO UMA LARANJEIRA MADURA
Daisy Melo


Eu estava ali em pé no ponto- — diacho de ônibus mais demorado, ainda por cima chega lotado, quer ver só? — e ele passou de bicicleta mas nem me olhou. Alguma coisa me prendeu àquele perfil moreno, de belo e delicado nariz, cabeça bem proporcionada, cabelos curtos, rentes, uma imagem que foi se dissolvendo a cada pedalada, lentamente, até que o ônibus chegou — Graças a Deus tem lugar — e me levou de volta à realidade, à vida, ao aumento da passagem, ao trabalho monótono, sem graça nem perspectiva. O dia de sempre.

Tantos dissaborezinhos diários não me permitiram pensar no deus grego tupiniquim — já que em época de Olimpíadas convém apelar para um deus grego qualquer — até que no dia seguinte, passou de novo e quase me joguei na frente dele, perigando me esborrachar no chão ou ser atropelada — olha que vergonha — pela bicicleta do deus moreno e ainda levar uma bronca tipo: “Ô maluca! Não olha por onde anda?”. Mas isso ficou só no querer porque estanquei e ele nem se virou, bicicletando feliz. Eu com cara de boba olhando o moço ir embora mais uma vez. Putz! Bestalhona!

Aí não trabalhei direito e fiquei aérea, calçada de nuvens nos pés. O patrão me deu umas broncas e eu nem liguei porque queria ir embora logo para casa, dormir cedo — acho que vou tomar um remédio porque cadê sono às oito da noite?—. E nem novela e nem jornal, pois quero acordar e ficar lá plantada no ponto do ônibus esperando o deus, que eu conheço de lado e de um lado só, porque ele vai e nunca vi voltar.

Cheguei cedo e finquei-me como se tivesse raízes, esperando. Ele passou, me olhou com aquele olhar enviesado – também pudera! Uma mulher toda de cor-de-abóbora às seis da manhã, estática como uma laranjeira madura no ponto do ônibus.

Fiquei tão parada, tão parada, que nem pude dizer o olá! de boca arreganhada que, por causa da insônia, ensaiei a noite inteira. Mas eu devia estar qual uma jaca podre porque ele arregalou os olhos escuros e sorriu um sorriso de dentes todos aparecendo e o sorriso mais lindo do mundo, pois eram umas perolazinhas brilhando com os primeiros raios de sol, que justo naquele momento nascia, provavelmente para apreciar a cena.

E o coração bateu tão forte que olhei para os lados para ver se alguém tinha escutado e fiquei tão zonza que o estômago deu umas risadinhas irônicas e decidi que não quero mais sair daqui e vou ficar esperando a bicicleta voltar para conhecer o outro lado dele e talvez merecer mais chuva de pérolas — que se dane o emprego. Finquei raízes no ponto do ônibus e aqui eu vou ficar.

 

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