ÉPOCA
DA INOCÊNCIA
Samuel
Silva
Era noite e Jesus estava em frente à tv esperando o sono chegar, sem vontade de induzi-lo com algumas cervejas, embora até o calor convidasse a libação noturna. Não estava cansado, ao contrário, a agitação em suas emoções o movia errático entre seus pensamentos e recordações, tentando não passar nem perto pelas recordações do casamento final e oficialmente enterrado com a assinatura dos papéis no balcão da justiça àquela tarde. Não queria lembrar da ex-esposa ainda atraente e foi surpreendido por vê-la vestida de saia curta e decote beirando a vulgaridade acompanhada de uma jovem advogada também sexy naquelas roupas típicas de jovens advogadas, demonstrando-se íntimas uma com a outra, chamando a atenção de todos no cartório.
Ele ainda a amava, era de sua natureza ser amoroso e essa foi a razão da separação. Engraçado, uniu-se por amor e este amor matou a união, quando ela disse que queria que ele fosse embora, que não agüentava mais ser sufocada por aquele sentimento doentio que ela recebia dele. Tanta atenção, tanto carinho. A passividade dele quando discutiam e ele concordava com ela inclusive quando estava errada, porque a amava. Ela não queria mais ser perdoada sem precisar desculpar-se ou justificar-se. O jeito com o qual ele aceitava seus caprichos e satisfazia ainda que sobre-humanamente as suas mínimas vontades o faziam sentir-se intoleravelmente devedora e culpada por ser normal e amar com naturalidade, não com aquela brutal e absoluta entrega com que ele a amava. Ela se agastara dele ser tão prestativo com todos, deixando-se ser usado pelos outros, sempre se sacrificando por um sorriso, por um agradecimento.
Começou a novela, o casal de vilãos começavam a discutir entre si para depois, em um paroxismo bastante explorado em folhetins, se agarrarem em beijos e abraços selvagens, a câmera deslizando closes pelos corpos, desnudando-os belíssimos, olímpicos como são sempre na tv, saudáveis, sarados, bronzeados, firmes...A cena dura alguns minutos, a audiência sobe.
Corta para uma casa suburbana.
O galã mocinho e rico, mas simples de coração, conversa delicadamente com a mocinha donzela e pobre, de pele amulatada exposta em uma roupinha simples, camisa de malha e saia jeans. Os bicos dos seios endurecidos pelo ar condicionado do estúdio atuando como se excitados pela imagem do riquinho boa-praça. Eles se beijam, de início quase castamente e então que num crescendo de paixão (devia estar assim anotado no roteiro) as línguas se agitam e quase não se contém na boca alheia e as mãos, como que guiando a lente, alisam e apalpam, em bolinações explícitas de dorsos e peitos.
Corta para uma praia qualquer de uma grande cidade.
Um grupo de jovens em roupas apropriadas ao local conversam alegremente, expondo seus corpos esculturais, biquínis minúsculos como há muito é moda e sungas quadradas, como voltou a ser moda. Adolescentes se aquecendo ao sol de verão e sublimando seus desejos em malhações e baladas dançantes.
Estava quente e ele foi para a varanda do pequeno apartamento querendo refrescar-se por uma brisa que nunca chegará, aprisionada pelos inúmeros prédios tão próximos que são uma barreira intransponível para o vento enquanto nada valem para a intimidade e a privacidade.
Da varanda ele acompanha a vida dos vizinhos de prédios próximos, querendo ou não, os gritos das discussões de casais, de pais e filhos, de irmãos, brigas, gozos; vê as comidas sendo feitas nos fogões, as pessoas assistindo tv separadas em aposentos diferentes graças às facilidades do ponto extra da tv a cabo, onipresente espelho mágico de mais de cem canais de repetições inéditas.
Um coroa careca assiste um torneio de sinuca, uma senhora idosa acompanha outra novela enquanto sua filha dança em frente à mtv. Dança sensualmente, dança, reproduzindo a cantora do clipe, uma negra americana de cabelo alisado e pintado de louro, uma pamela anderson de ébano, a mesma que grita que vai demolir você em um anúncio de refrigerante.
Ele acompanha fascinado os movimentos da garota, tentando adivinhar sua idade, atrapalhado no mister pelas roupas simples, short e camisa, que não trazem nenhum significado a ponto dele ter ficado, de início, na dúvida se era uma garota ou um garoto, nessa época unisex de cabelos cumpridos e brincos para todos.
A dúvida só se desfez quando ela tirou a camisa pela cabeça, jogou-a sobre a cama e desapareceu pela porta e ele pode perceber os seios em formação, ainda cônicos. A luz do banheiro acendeu, escapando pelo pequeno basculante de ventilação.
Ele voltou a assistir a novela enquanto um casal de meia idade, ele ainda popular entre as mulheres, ela firma em suas plásticas e lipoaspirações tentando resistir ao cruel tempo, cinquentona ainda desejável apesar de um vasto currículo de escândalos de drogas e sexo. A Deusa midiática do desejo apesar das décadas passadas, tendo conseguido crescer na carreira entre prostituições, por papéis e por dinheiro, chegando ao estrelato e ao rol do imaginário masculino. Ela de negligê discute com o marido enquanto um rapaz se esconde seminu no armário e só é visto pelos que assistem a novela, pobres personagens cegos.
E sempre aquele discurso, qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amar valerá.
Corte para a dupla de homossexuais inteligentes, sensíveis e virtuosos, sem qualquer defeito, solidários a todos, sempre de alto astral apesar do tanto que sofrem pelo preconceito contra o que é apenas sua opção de prazer e amor.
Com tanto amor, com tanta emoção, mais um capítulo da novela se vai, como todos que foram de tantas novelas que também já se foram, mas valem a pena ver de novo, porque só o amor vale a vida e mesmo entre os vilões, os maus, os diabos humanos, o amor existe e se concretiza em trepadas monumentais, em cores, sons e imagens que são detalhadas e apresentadas diuturnamente pela liberdade de expressão e pelas várias formas de arte.
Na música, na literatura, na pintura (até sobre corpos vestidos apenas de arte), não só na escultura, mas o que antes eram retratos de gente eram agora retratos do amor entre as gentes, representado em cenas de beijos, abraços e penetrações.
Voltou à varanda a tempo de ver a garota entrar no quarto enrolada em uma toalha e fechar as cortinas. O calor não dava trégua, o cigarro acabou. Era hora de sair, dar uma volta, ir ao o bar da esquina.
Jesus pediu o cigarro e uma cerveja para matar o tempo e a sede, desistindo de resistir, ara adulto e independente, não devia explicações aos pais por beber durante a semana e eles, de onde bem estivessem, não poderiam admoestá-lo pela quebra da regra familiar. Não que fossem pais de rigidez vitoriana, mas educaram-no ensinando os limites que devem ser observados por um homem de bem, com seu direito terminando onde começava o do outro, amando ao próximo como a si próprio, numa época em que a palavra amor não era tão banal, utilizada para tantas coisas e para justificar quantas outras! Todo o mês visitavam algum asilo ou orfanato levando víveres e roupas que deixavam lá em donativo sincero de humanidade e diziam a ele que era bom poder ajudar e que deveria ter sempre ciente que existiam os menos afortunados, os desprovidos de tudo e qualquer coisa, cujo único sopro benfazejo era o carinho e atenção que pessoas como sua família dedicavam ao semelhante. Os seres humanos eram inexoravelmente interdependentes, ninguém era uma ilha e que ninguém poderia ser livre e feliz no mundo se existisse ao menos uma pessoa que não tivesse o que comer, fosse oprimido ou vivesse em condições sociais, econômicas ou políticas subumanas. No início Jesus fazia as visitas e as doações sem consciência, simplesmente acompanhando os pais, e então aquilo se tornou um hábito que ele ainda mantinha, ainda quando o dinheiro ou o tempo escasseava para ele, pois mais dá aquele que pouco tem. Professavam uma religião especial que estava acima e além de qualquer religião e que era simplesmente uma religião de amor, sem rezas ou rito, mas cheia de atos e compromissos para com os outros. Seus pais poderiam ser santos, mas não há mais milagres a fazer, basta ser humano.
Ainda não terminara o primeiro copo e viu a garota do prédio em frente sair do prédio, vestida despretensiosamente, atravessar a rua e parar quase ao seu lado no balcão do botequim. Queria um maço de cigarros também, tão nova e já viciada, como são sempre os que começam no vício, e Jesus sentiu o cheiro do perfume da garota misturado com o cheiro de banho tomado. Alguém do outro lado do bar a cumprimentou pelo nome, Maria, e Jesus pode prestar mais atenção à menina enquanto ela conversava com o homem que a chamara.
Era bem novinha e branquinha, não mais que quatorze anos. Os cabelos longos até o meio das costas com fios mistos de castanho, amarelo e prata, vários brincos nas orelhas, uma tatuagem que parecia um ideograma chinês na base da nuca vislumbrada num meneio coquete de cabeça quando ela se refez do riso causado por algo que o homem lhe cochichou. Outra tatuagem, uma pequena rosa no ombro exposta pela blusa fina de alcinhas e Jesus podia perceber os seios contornados pelo tecido rosa-bebê, os bicos salientes pelo roçar do pano. No umbigo, um piercing refletia a luz branca do bar, também rebatida por uma penugem clara que descia indo esconder-se na minissaia de cintura baixa. As pernas, longilíneas como sempre são nesta idade feliz, terminavam em pés calçados por uma sandália simples de couro, um tornozelo aprisionado em uma corrente dourada discreta. Olhando da perspectiva de Jesus, parecia sofrer de uma pequena lordose, com a bunda empinada típica deste acometimento.
A garota, Maria, riu, despediu-se do homem e saiu andando, mas não de volta para seu prédio, enquanto Jesus sentia o fel da cerveja na boca. Já havia pago, deu mais um gole por desencargo da consciência e resolveu caminhar um pouco, espairecer também. Não fazia questão de direção e apenas andou tendo a sua sombra à luz da lua como bússola.
Alguns quarteirões depois, distraído, sentiu uma mão em seu braço.
- Senhor! Senhor!
Olhou para a voz, assustado, e viu na penumbra um cigarro apagado e depois o rosto de Maria em volta e ela fazia com as mãos um gesto de quem usa isqueiro.
- Tem fogo?
Sorria e ele sorriu de volta. Tinha fogo e não pode deixar de pensar no duplo sentido, pois fazia mais de um ano, desde que a ex-esposa o deixou, que se insatisfazia sozinho. Pegou o isqueiro no bolso da bermuda e roçou de leve em seu pênis, sentindo-o ter um espasmo. Rodou o fuzil, ferindo a pederneira e aproximou-se com a chama à Maria, vendo a brasa acender-se enquanto ela dava uma longa tragada. Ela agradeceu sem fitá-lo, de modo automático, mas ele se viu hipnotizado pelos olhos verdes escuros da garota, os cílios longos, um quê de sensualidade que percebeu nos reflexos da brasa, dissimulado naquele olhar indiferente. Lembrou-lhe uma cena de documentário sobre o Serengueti, as leoas trotando por entre os gnus de enorme manada como se alheias aos bovídeos com displicência estudada na escolha dos mais fracos para vítimar.
Ela virou-lhe as costas enquanto uma nuvem escondia a lua e toda a rua submergiu na escuridão mal combatida por escassos postes de luz amarela, o silêncio da noite de um dia de semana em um bairro sem trânsito, longe das rotas principais de tráfego. Um arrepio indecifrável correu-lhe a espinha ao notar as calçadas vazias e ele a seguiu. Queria falar com alguém, queria falar com ela.
- Garota!
Tocou seu o braço como ela fizera antes e sentiu a carne firma, a pele macia e quente. Sentiu uma intensa ternura por aquela menina, vontade de abraçá-la, prometer protegê-la, obrigar-se por ela a dar-lhe a lua e o sol.
Ela se virou e Jesus tapou-lhe a boca com mão livre enquanto com a outra lhe torcia o braço para trás, numa chave de braço que impediu qualquer resistência eficaz, ao passo em que a puxava, corpo colado ao seu, até um vão entre dois prédios escuros e sem vida que de dia eram repartições municipais.
Maria mordeu sua mão e a dor obrigou-o a forçar a chave de braço e tentando acalmá-la sussurrou palavras doces ao ouvido dela, entremeadas de pedidos para que se acalmasse, promessas de não lhe fazer mal algum, declarações de querê-la bem, mantendo o caminhar para a servidão entre os prédios e entrarem naquele beco de calçada. Os olhos verdes ficaram maiores e mais escuros quando ela o olhou e Jesus percebeu contente que não mordia nem se debatia, que parecia aceitar seu abraço e suas palavras. Tirou a mão de sua boca e ela gritou e isso o apavorou porque ele não queria que ela o temesse e tampouco queria chamar a atenção de algum bandido vagabundo que perambulasse por aqueles ermos caçando vítimas.
Anos de aprendizado em cinema e televisão (e alguma literatura) o ensinaram que para controlar um início de histeria um tapa no rosto era suficiente, mas ela apenas se calou após a terceira ou quarta bofetada, talvez porque ele houvesse empregado pouca força de início para não feri-la. Ele de novo fez as promessas e disse as palavras doces que esperava acalmasse Maria e achou ter conseguido: ela ficou muda, inerte entre seus braços, só os grandes olhos não se apequenaram e, arregalados, pareciam engoli-lo e as lágrimas que escorriam deviam ser de gratidão porque ele afirmara estar ao seu lado, para defendê-la de todos, ela era tão pequena e ele tão grande, justo para ser seu paladino, seu campeão.
Frente a frente, corpos colados, ele sentia aqueles seios em crescimento, o calor em seu ventre, o pênis espremido contra Maria, apertado naquela bermuda velha, crescendo ao ponto de ficar dolorido e sem deixar de abraçar aquela menina tão delicada e querida para não perdê-la para as trevas que os envolvia, precisava acabar com a dor.
Ele maldisse não ter a bermuda uma abertura frontal e abaixou-a com a mão esquerda enquanto a mão direita permanecia enredada pelos cabelos de Maria, e Jesus tentou não pensar em quão ridículo devia parecer com a bermuda arriada nos joelhos, quando sentiu o corpo de Maria tremer convulsivo e ela soluçar; talvez ela sentisse frio com aquela roupinha tão curta, tão fina. Abraçou-a mais forte e a ergueu do chão e se ela fosse um pouco menos a poria no colo como a uma criancinha para ninar e a certeza de ter feito o certo veio quando a dor no pênis diminuiu sob a pressão que faziam as coxas de Maria onde ele se aninhara, embora restasse uma sensação de atrito na ponta com um pressionar para baixo.
Sem se desvencilhar de Maria, pois não queria insegura, achou seu cacete entre as pernas delas e afastou o que o incomodava, um pano e seus dedos entraram desajeitados alguns milímetros para dentro dela, que deu um grito de dor que ele abafou abraçando-a com mais força. Para não impedir sua respiração ele afrouxou um levemente o abraço e sentiu o corpo dela escorregar pelo seu dorso e ela gritou novamente, obrigando-o a tapar-lhe a boca mais uma vez, agora com um chumaço do pano que o incomodara e que arrancara dentre suas coxas.
Ele achou que ela gostava dele porque agasalhou
seu pênis de uma só vez, muito apertado, e se ela quis tê-lo
dentro dela era porque sentiu amor e então ele a amou em movimentos
bruscos, em pé, naquele estreito e escuro beco no silêncio da
noite quente até que explodiu em um gozo ancestral e ele acreditou
que também para ela fora assim e que o gozo dela tinha sido mais poderoso
porque seu corpo amoleceu entre seus braços apertados, aquela boquinha
fechada pelo pano e belos seus beijos não resistiu a ele e os grandes
olhos verdes se fecharam. Ela estava linda, assim adormecida, quando Jesus
a deitou no chão com o máximo de cautela para não acordá-la,
não sem lamentar a estranha maquiagem que ele não percebera
antes, que faziam seu rosto tão pálido e os lábios em
tons roxo-azulados. Talvez fosse batom líquido, ele sabia que existia
disso, pois um pouco escorregara pelo canto da boca de Maria.
Jesus fez amor com ela como nunca antes fizera, nem em qualidade nem em quantidade,
e quando começavam os primeiros indícios de claridade no céu
ele foi embora, com um beijo meigo de despedida na boca inerme de Maria, sem
fazer qualquer barulho para não acordá-la.
Inocentemente, Jesus se foi e não
soube que Maria foi encontrada morta pelos ciosos funcionários municipais
do prédio vizinho no início do expediente.
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