"CHEIROS DO PASSADO"
Raymundo Silveira

Às vezes sinto o cheiro do passado! Do aroma dos lençóis limpinhos com que minha mãe me envolvia e que se mesclava com o cheiro dela mesma. Sinto o cheiro do passado sem que seja preciso existir nada a ele imanente. Sinto o perfume da minha prima como se ela estivesse aqui agora, embora já faça quarenta e nove anos que partiu para ir “estudar a geologia do campo santo”. O odor da minha prima – a irmã que nunca tive - está tão presente na minha memória olfativa que ouso dizer que seria capaz de descrevê-lo com palavras. Era o cheiro de uma menina moça, bonita, alegre, carinhosa. Mas não era um perfume artificial. Minha prima recendia a bondade e a amor.

Às vezes sinto, bem nitidamente, o cheiro do passado! Sou capaz de identificar através dele, todos os momentos marcantes da minha infância. Sinto o cheiro dos Natais; dos folguedos juninos, dos aluás, dos fogos de artifício que meu pai comprava e “soltávamos”, da nossa calçada, diante das fogueiras; do mês de Maio; da cozinha da nossa casa; dos currais de gado; do leite mungido e bebido numa caneca de alumínio, ainda com escuro. Posso identificar pelo olfato, a atmosfera do Inverno e do Verão da minha aldeia. Embora lá existissem apenas estas duas estações, sinto também o aroma da Primavera, porque o conheço muito bem, graças às minhas andanças pelo mundo, e tenho absoluta certeza de que já o havia sentido, quando criança.

Às vezes sinto o cheiro do passado! Do odor de terra molhada pelas chuvas; dos marmeleiros; dos ninhos de passarinhos; dos mata-pastos e das babugens onde brincávamos de esconde-esconde, sem nunca imaginar que um dia ainda teria de me esconder de verdade, como acontece agora. Hoje me escondo, sem brincar, o tempo inteiro, da dor, da violência, das conseqüências dos danos que nós mesmos causamos à natureza, da competição selvagem e desumana, da ganância, dos vendedores e dos compradores de vaidades e de ódios, dos vícios, das doenças, do egoísmo, das injustiças, das angústias existenciais, do medo.

Às vezes sinto, sem querer, o cheiro do passado! Dos incensos das novenas; das rosquinhas, dos “esquecidos”, dos suspiros pulverulentos, das queijadas, dos puxa-puxas e das cocadas que comíamos depois. Sinto o cheiro da alfazema a queimar no quarto da minha mãe, quando nascia – natimorto - cada um dos meus irmãos.

Sinto, porém, com muito mais intensidade, o cheiro da inocência, da paz, da serenidade, do sono, das madrugadas, dos sonhos, do amanhã, do anoitecer e do amanhecer, do luar, dos céus estrelados, dos banhos na chuva e no riacho, da proteção dos meus pais, da ilusão, da esperança, da felicidade postiça. Sinto também o perfume agridoce da saudade, pois aqueles aromas foram tudo o que restou do meu pretérito.

 

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