O CONFESSOR
Marcelo d'Ávila
Abro o pesado Livro e registro os fatos tais como aconteceram:
Acompanhei tudo desde o princípio com particular interesse, como de resto acompanho qualquer assunto que envolva meu nome.
Todos, sem exceção, sempre temeram o padre confessor. Sua figura alta, magra e de aspecto austero impunha, mais que respeito, medo. Talvez as vestes, sempre negras, tenham contribuído para compor a imagem assustadora. Mas os excessos nas interpretações de minha palavra foram, com certeza, as razões principais de tanto temor.
O ambiente, desde logo, é todo voltado para despertar culpa, vergonha e arrependimento. Os olhos acusadores dos santos, do alto de seus nichos. A pouca luz que irradia dos vitrais. E o profundo silêncio, interrompido apenas pelo eco dos passos ao longo do corredor asséptico. A um canto, o temível confessionário. Prostrados de joelhos, cada um à sua vez, suplicam à benção do confessor. Ouvem a voz de quem se nomeia promotor, juiz e carrasco de minha vontade. Desfila um rosário de acusações, enumerando os pecados cometidos ou intentados, exigindo a confissão como quem arranca das entranhas, a bofetadas, as declarações de um assassino ou de um ladrão. Na ingenuidade própria da inocência, aqueles jovens ignoram que suas consciências carregarão para todo o sempre o estigma de pecadores. A voz acusa, Atentaste contra a castidade? Sozinho ou acompanhado? De fato ou em pensamento? Desobedeceste a pai e mãe? E assim por diante, constrangendo a uns, a outros tornando pálidos e trementes, a não poucos levando às lágrimas. A todos, no entanto, provocando medo. Acusa, julga e castiga. Impõe as penas. E crê, deste modo, estar cumprindo sua pretensa missão.
Na tarde em que particularmente me detive, havia algo diferente. O menino, ainda jovem demais para compreender conceitos de culpa e redenção, ajoelhou-se ao lado do confessionário bem como lhe haviam ensinado. A nave da igreja estava vazia. O confessor, ao contrário da crueza e da rigidez com as quais costumava tratar suas ovelhas, utilizou-se de paciência e delicadeza. Também a penitência aplicada foi diversa das costumeiras. Fez-se acompanhar do pequeno pecador até seus aposentos. E, a sós, tocou-o. Alisou os negros cabelos. Acariciou as faces. Deslizou pelos braços, desnudando o tórax. E mais além. Beijou o abdômen, a pelve. Com um sorriso nos lábios, despiu o que restava, cobrindo o corpo emagrecido com um breve escapulário. E mostrou ao pequeno pecador também sua nudez, fazendo com que o menino repetisse seus gestos na descoberta suja dos corpos.
Ao final da tarde, despediu seu cordeiro, plenamente perdoado de seus pecados, desde que jamais contasse seu segredo. Sob pena de condenação eterna.
Livro, em que ponto perdi o controle?
Terá sido quando permiti que se utilizassem de minha palavra para benefícios próprios? Quando deixei que se matassem em meu nome?
Agora é tarde, Livro, e os registros que traço a ferro e fogo em tuas páginas servirão não apenas como peças de acusação e defesa no julgamento final, mas como confissão de meus crimes em meu próprio juízo. Sou, eu mesmo, o pecador maior.
Exausto, afasto as lágrimas, fecho
os olhos e o pesado Livro.
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