SEGREDOS DA CARNE
Luís Valise

 
 

Aquele não era um bairro pacato. A bem da verdade não era bem um bairro, era mais um redemoinho de vielas estreitas, projetadas pelas necessidades de cada um, e bordejadas por construções toscas de alvenaria primária: paredes fora de prumo, telhados improvisados, córregos de esgoto serpenteando o mau-cheiro e os focos de pestilência. Homens e mulheres acreditavam fugir da miséria centenária tomando posse de qualquer terreno dando sopa, e assim inchava o ajuntamento que tinha o nome de Jardim Harmonia, embora não fosse uma coisa nem outra. O local era acidentado, uma sucessão de subidas e descidas em cujo ponto mais alto se avistava a cruz sobre um barracão, onde funcionava uma igreja que prometia o ouro e o mel para todos aqueles que contribuíssem com dez por cento dos seus ganhos. Como poucos ganhavam alguma coisa, pouca era a arrecadação, e o Pastor Norisvaldo só não se mandava dali porque em nenhum outro lugar teria, como ali, o que mais gostava na vida: mulher. Não tinha preferência por idade, tamanho, cor, nada. Sendo mulher era com ele mesmo. Ouvia queixas, lamúrias, confissões, verdades, mentiras, tudo com o mesmo olhar piedoso. Depois, começava chamando de minha filha, pegava na mão enquanto desfiava palavras de calmaria. Alisava o braço acima do cotovelo, sentia a pulsação, o respirar, e arriscava um abraço de conforto. Grande parte das vezes a consulta terminava no sofá do quartinho nos fundos da igreja, onde não fazia diferença a variz saliente, a falta de dentes, a flacidez. Norisvaldo puxava as cortinas escurecendo o ambiente, e pastoreava o rebanho de ovelhas com seu cajado redentor.

Certa feita, terminado o culto, os beatos foram saindo da igreja. Cabeça baixa, Norisvaldo conferia a caixa de contribuições, alisando as notas amarfanhadas: centro e treze reais. Cento e treze reais! A arrecadação diminuía a cada semana. O desemprego crescia como nunca, e os crentes, entre o pão e a promessa, optavam pelo primeiro. “Tudo culpa da televisão”, resmungava Norisvaldo, já que além das novelas o pastor enfrentava também a concorrência das poderosas igrejas eletrônicas. “É o fim, é o fim!”, vociferava já em voz alta, quando viu a figura miúda que permanecia sentada numa cadeira dos fundos.

- Pois não? Perguntou, enquanto se dirigia à moça, guardando a maçaroca de notas amassadas no bolso.

- Pastor, preciso falar com o senhor. Norisvaldo notou o sorriso tímido e com dentes. A roupa simples não escondia o arredondado do quadril, e as mãos nervosas seguravam a bíblia com força. O pastor adoçou os olhos e a voz:

- Vamos entrando, minha filha, que eu já vou. E enquanto a crente se dirigia ao quartinho dos fundos, Norisvaldo fechava a porta da frente e apagava a luz do salão principal. No quartinho fez a moça sentar-se num sofá coberto de courvin azul claro, enquanto ele deu a volta e sentou-se atrás de sua escrivaninha. No início era fundamental manter distância respeitosa.

- No quê posso ser útil?, perguntou Norisvaldo com olhar cândido.

- É o meu marido, pastor. Desde que ele arrumou outra... (neste ponto Norisvaldo fingia prestar atenção ao relato, enquanto examinava a moça com olhos semi-cerrados: cabelos castanhos limpos e brilhantes; pele morena-clara, nariz de abas aflitas, sobrancelhas espessas sobre olhos xavantinos; corpo delgado, seios medianos, quadris manga-larga, saia comprida escondendo pernas que ele imaginou fortes e rijas)... e, agora, toda noite ele quer fazer isso.

Norisvaldo saiu do transe: - Desculpe, mas... isso o quê?

- Eu já falei, e tenho vergonha de repetir.

- Pode repetir, minha filha, abra seu coração.

- Desculpe, pastor, mas eu não tenho coragem. Nem sei como disse aquilo antes. Não repito por nada neste mundo. É muito feio.

Norisvaldo sentiu o demônio cavalgando seu coração. Agora ele tinha que saber o que o marido dela queria ou fazia toda noite, e que devia ter aprendido com a outra:

- Mas... e antes, ele nunca pediu pra fazer isso?

- Nunca, pastor, e nem eu imaginei que isso pudesse ser feito. Esconjuro!

Norisvaldo fechou os olhos e imaginou tudo o que já fizera naquele quartinho, e quanto mais lembrava mais excitado ia ficando. Levantou-se, deu a volta na mesa e sentou-se ao lado da mulher, que apertou ainda mais a bíblia entre os dedos. Segurou a mão da moça. Fez voz de cordeiro na chuva:

- Confie em mim. Sou um homem experiente. Muita gente vem pedir meus conselhos. Muitas mulheres na sua situação já vieram, e saíram confortadas. Mas me contaram tudo. Senão, como é que eu poderei ajudar? Com a mão direita pegou o braço dela acima do cotovelo. Era macio, pele lisinha. Concentrou toda a misericórdia do mundo no olhar, e sussurrou “Conta, conta pra mim o que ele quer?” Sentiu que estava próximo da ejaculação, seu membro latejava junto da coxa quente. Ela levantou, esfregou a mão na saia, visivelmente embaraçada.

- Pastor, me desculpe, Foi uma loucura ter dito aquilo pro senhor. Espero que Deus me perdoe. E saiu sem sequer olhar para trás.

Norisvaldo nem disse boa-noite. Estava com o olhar perdido nas lonjuras que a memória alcançava. Uma pequena mancha brotou sob a calça. Odiou com todas as forças a época da inocência.

 
 

fale com o autor