SUMMERTIME
Bárbara Helena
"Summertime,
Child, the living's easy.
Fish are jumping out
And the cotton, Lord,
Cotton's high, Lord, so high"
Billie dedilhou os primeiros acordes de Summertime...
Mimi entrou com sua voz rouca, Janis... a música lancinante percorria
as mesas quase vazias do fim de noite.
Eu acompanhava, fazendo o backing na surdina para não atrapalhar... child,
the living's eaaasy... quando ela incorporava a Joplin não havia outro
caminho senão aproveitar.
Mimi era uma grande cantora, teria sido famosa se tivesse nascido no sul dos
states e não no norte da zona. Fish are jumping out... annnnnnd the cotton
is hiiighhhh....
Tinha um timbre rascante e dolorido que lembrava a outra, um fraseado jazzístico,
incongruente naquele mundo empoeirado dos cigarette blues.
E a imponência, o corpo escultural onde os anos iam acrescentando gorduras
sem boa-vontade. Pintava o cabelo de louro, para imitar Marina, mas era morena
da terra, brasileira, alma de Janis, voz de Janis em corpo de axé.
Cantava forró de raiva e samba em desespero, com sua alma de blues. Ela
era summmertimes, cover de Joplin.. arrepiante.
E se apaixonava por caminhoneiros.
Toda a intensidade de seu rouco desempenho lembrava aqueles amores baldios.
Os caras sumiam na poeira da estrada. Fazer o que? Éramos cometas encontrando
cometas em órbitas disparatadas.
Mimi bebia muito e desconfio que isto ajudava seu desempenho absurdamente forte.
Todos nós afogávamos a voz, o piano, a guitarra e os blues no
fundo do copo e na fumaça dos baseados.
Naquela noite estava melhor do que nunca... summertimes.... a voz rouca contracenando
com a guitarra, dura, incomparável... Oh, your daddy's rich and your
ma is so....de repente ela se curvou e desabou no palco...
Corremos, Blllie , Marina e eu e a retiramos do chão, se esvaindo em
sangue.
Os poucos fregueses olhavam assustados, mas mal perceberam o que acontecera.
No camarim, deitei Mimi na minha cama, pálida, ainda sangrando:
- Billie já foi buscar o médico...
- Eu .. não quero médico.. você sabe... não posso...
tentou se levantar
- Fica quieta!...- segurei sua mão - ... Por que, Mimi?
- Eu pensei...ele disse... - começou a chorar baixinho
- Ta bom, fica quietinha... quem sabe ele não vai voltar?.. te procurar...
- Não vai não... mas eu, eu acreditei... idiotas nós..
todas nós - recomeçou a chorar silenciosamente
- Não foi idiotice.. foi amor - minha voz estava rouca
- Amor... - nem que eu viva mil anos, vou esquecer o olhar dela para mim, cão
batido era isto.
Mimi se recuperou rápido, se apaixonou de novo, encarnava Janis na poeira
de estrelas.. summertimes... Child, the living's easy..
Quando sentiu que a gordura venceria as curvas, baixou os olhos para a terra.
e entre os amantes do forró conheceu seu fazendeiro - um sitiante de
Maria da Ajuda, vilarejo perto de Cabuçu.
Ele vinha todas as noites ao barzinho sórdido só para ver Mimi.
E até passou a curtir Joplin... Hush baby baby, baby, no no no, no, no,
no, Don't cry, don't you cry ...amor de verdade.
Outra vez se curvando, caindo no palco, desta vez com braços fortes para
ampará-la.
Mimi casou na Igrejinha caiada, de véu e grinalda.
No coro, Billie tocou Sophisticated Lady pela primeira vez para outra mulher
e Marina com voz de Janis acompanhou a guitarra dolorida... You're gonna spread
your wings... Foi o nosso adeus.
Saímos pela noite estrelada sem olhar para trás.
Mimi reencontrara a inocência perdida.
Na rodoviária deserta, Marina observou que era verão, summertimes.
Por alguma razão que eu não consigo recapturar, achamos aquilo
espantosamente engraçado. E continuamos a rir até explodir a madrugada.
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