TESTEMUNHO DO AMOR AO INSTINTO
Raymundo Silveira
Aconteceu durante um daqueles famosos ralis Paris-Dakar. Participava uma família holandesa que vivia de aventuras: o pai, Erik, de trinta e seis anos; Katrine, a mãe, de trinta e dois e Peter, um adolescente de apenas catorze. Estavam habituados a todos os tipos de aventura. Tinham um mapa e haviam-no estudado detalhadamente durante um mês e meio; sentiam-se seguros. Tudo fora rigorosamente planejado e as chances de um imprevisto eram, praticamente, zero. Infelizmente, este advérbio é traiçoeiro e às vezes mostra a sua razão de existir numa frase. E quando isto acontece o que era praticamente zero por cento, se transforma em cem por cento.
Em Quazarzate, uma cidade no sul do Marrocos, Erik dirigia o Toyota e enquanto Katrine consultava o mapa, uma tempestade de areia cegou-os por completo e levou a carta para sempre. Ficaram um pouco preocupados, mas como a tinham praticamente de cor, prosseguiram. Em El Gallaouiya, na Mauritânia, se desviaram acidentalmente da rota, percorreram cerca de cento e cinqüenta quilômetros, mas imaginavam que tudo estaria seguindo corretamente. Pretendiam pernoitar em Nouakchott e sabiam que antes teriam de passar por Atar, mas este nunca aparecia. Decidiram dormir no chão ao redor do veículo e, para isto, estavam preparados. Traziam tudo: do saco de dormir às armas de fogo para a defesa.
No dia seguinte, após um substancioso café da manhã prosseguiram a viagem e de repente se deram conta de que se encontravam em pleno deserto. Permaneceram rodando em círculos e não tinham a menor idéia de onde se encontravam. Apesar do medo, nada lhes faltava. Havia víveres, água e combustível para dez dias. Mas dez dias se passam! Rápida ou lentamente, mas se passam. A primeira coisa que acabou foi a gasolina e os três tiveram que sair caminhando, mochila às costas, em direção ao nada.
Depois de quatro dias acabaram-se os alimentos e passaram a racionar água. Quem mais bebia era o jovem Peter. Os pais se preocupavam muito, mas não tinham coragem de negar. Três dias mais tarde acabou a água. A sede foi se tornando insuportável. Atingiu o limite da tolerância na tarde do terceiro dia a partir de quando deixaram de beber. Katrine havia escondido um cantil de dois litros, pois já previa o que poderia acontecer. À noite ninguém conseguia dormir. Katrine se afastou um pouco e disse que ia fazer cocô, mas o que ela fez mesmo foi levar o cantil e fez um sinal a Peter para acompanhá-la. Beberam sofregamente. Ainda restou mais ou menos um litro. Erik de nada desconfiava. À noite escutou um murmúrio de líquido sendo deglutido e pensou que estaria tendo alucinações. Katrine bebia e dava de beber a Peter.
Na tarde do dia seguinte restava pouco menos
de meio litro de água e Erik percebeu a tramóia:
- Miseráveis. Como podem fazer isto comigo? Quero água!
- Não! Disse Katerine.
- Sua puta, como pode me negar um gole de água.
- Não!
Erik avançou em direção à mulher a fim de arrebatar-lhe
o cantil. Peter abateu-o pelas costas com um tiro de escopeta. Deixaram o cadáver
para trás e prosseguiram, mal se sustendo de pé.
- Mãe, quero água.
- Um gole.
- Não! Quero muita água.
- Não!
- Quero água e não me negue se não mato você como
fiz com o pai.
- Não!
- Quero beber, mãe, por favor.
- Não! Esta água é só minha. Fui eu que guardei.
Fui eu que escondi.
Atracaram-se e lutaram corpo a corpo. Peter tinha a escopeta. Katerine conseguiu
subjugá-lo. Tomou a arma e atirou na cabeça do filho.
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