CORAÇÃO DO AVESSO
Luís Valise

 
 

Sacolejando no vagão do trem de subúrbio, João Paixão evitava a miséria que passava pela janela, devorando as páginas de crimes do jornal popular. Gostava particularmente daqueles cometidos por amor, por ciúmes, por traição, e mais ainda quando traziam fotos dos corpos em decúbito, como aquela estampada no alto da página: um homem deitado sobre lençóis ensangüentados, as pernas saindo do colchão como se conhecessem o caminho do inferno. Abaixo da foto a legenda esclarecia: “Dormiu com a vizinha, acordou com o diabo”. Ao lado, em foto 3x4, um retrato antigo daquela que cometera o gesto tresloucado. Morena, rosto caboclo, olhar reto, cabelos cacheados. Vendo a desgraça alheia João Paixão acabava por se achar menos desgraçado, como os rotos que riem dos remendados nos programas de auditório aos domingos. Tudo merda do mesmo cu.

Saltou do trem na estação central e seguiu a pé para o trabalho, trazendo no dedo o cabide coberto com plástico preto. Caminhada de meia-hora, suor correndo do sovaco, chegou no trabalho junto com a noitinha. Tinha chave da porta da frente, primeiro a chegar, encarou o cheiro forte de cigarro entranhado no carpete. Passou direto para os fundos, entrou no vestiário, pendurou o cabide, puxou uma cadeira e seguiu a leitura. Ainda era cedo.

O nome da morena era Divaneide. Amigada com o Cícero, aquele que não teve tempo de correr. Cícero passava o dia no bar do Sinésio. Quer dizer, bar era jeito de falar, uma birosca com mesa de mini-bilhar na calçada de terra batida. E o Cícero era bom no taco. Fazia uns trocos no jogo barato, tomava cerveja, comia os petiscos feitos pela mulher do Sinésio. Alguém abriu a porta da frente, João Paixão dobrou o jornal e foi fazer a barba. Era o Jurandir, que também trazia um cabide pelo dedo.

- Calor do caralho! Tudo certo, Jotapê?

- Certo, Jura, como sempre. Será que a casa vai encher, hoje?

- Claro que vai, Jota. O que não falta é trouxa.

Terminada a barba, rosto refrescado, João Paixão tirou a camiseta do Santos, jogou água debaixo dos braços, enxugou e passou um bastão desodorante. Abriu o zíper do plástico sobre o cabide e tirou uma camisa branca, bem passada. Depois trocou de calças, e pegou o par de sapatos pretos que guardava no armário. Logo parecia outro homem. Terno preto, camisa branca, gravata borboleta, sapatos brilhantes. Jotapê era o melhor garçom da boate.

O pico era entre uma e duas da madrugada. Um entra-e-sai frenético. João Paixão trabalhava com os sentidos em alerta máximo. Se um espertinho se mandava sem pagar, a conta caía em suas costas. Se uma garota saísse com um freguês antes de tomar dois drinques era bronca na certa. Passava a noite carregando copos e garrafas, e pelas quatro da manhã estava morto. Quando a casa fechava os garçons trocavam de roupa e faziam o caminho de volta, os cabides pesando nos dedos cansados. Às vezes, não era sempre, uma das garotas, provavelmente com dor-de-corno, convidava pra dormir:

- Jotapê, fica comigo esta noite? Fica, gracinha?

Diziam “gracinha”, ele ria. Diziam “fofo”, ficava vermelho. Se achava um bosta, mas topava sempre. Que outra chance de ganhar uma mina daquelas? Acordava no meio da manhã, deixava a mina dormindo e corria pra estação pegar o trem de volta, terminar de ler o jornal.

A mulher do Sinésio começou a dar mole pro Cícero. Logo o esquema estava arranjado: à tarde, enquanto Divaneide trabalhava, ela ia na casa de alvenaria sem reboco e se deitava na cama com o Cícero. Ruas estreitas, olhos compridos, deu no que deu: enquanto o malandro dormia, Divaneide enfiou-lhe uma faca no pescoço. O sangue espirrou no teto. João Paixão fechou o jornal. Bem-feito.

- Divaneide, visita.

Como em todos os domingos, a cadeia estava um rebuliço. As presas se enfeitavam como podiam para receber os parentes. Vinham pais e mães e filhos e irmãos e noivos e maridos e amantes. O povo de Divaneide tinha ficado lá pelos interiores secos esturricados, sem notícia nenhuma quando tudo estava bem, agora então é que estava sozinha mesmo. Ainda assim ela se arrumou. Alguma colega de fábrica. Saiu para o pátio cercado por muros altos. Crianças corriam por todos os lados. Alguns casais buscavam cantos discretos para gozos incompletos. Um homem estava parado olhando para ela. Roupa limpa, bem barbeado, nem velho nem novo, nem feio nem bonito, nem alto nem baixo. Chegou até ela:

- Divaneide, prazer, João Paixão. Pode me chamar de Jotapê.

- Num tô lembrada de você. O quê você quer?

- Eu quero que você me conte como é o amor.

No começo foi difícil, Divaneide pensou que ele fosse louco. Depois compreendeu que era só um pobre coitado. E então ela contou. Ele apareceu durante alguns domingos, e ficava ouvindo muito atento, os olhos bem abertos de espanto. Depois nunca mais apareceu.

O trem chacoalha. João Paixão busca as páginas de crimes. Às vezes alguma garota, provavelmente com dor-de-corno, chama-o pra dormir. Jotapê aceita. No meio da manhã volta correndo pra estação, pegar o trem de volta, terminar de ler o jornal. Ele nunca mata, nem morre. É só testemunha do amor.

 
 

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