AIRAMA
Leila Silva
A mesma paisagem escuta
o canto
e assiste à morte da cigarra
Matsuo Bashô
Um cão passa na rua. Um pobre cão magro e sem dono. Chamo-o chaninho
chaninho
chaninho
sem
atentar que chaninho é chamamento para gato. Ainda assim ele vem. De
tão pobre já deve ter perdido a dignidade canina.
Maria não me quer mais. Diz coisas
descabidas, cospe no passado, rasga as fotos...
Dou um osso ao cão e ele abana o rabo feliz. Decerto.
Maria, agora, era pura matemática. Cinquenta por cento disso, cinquenta
por cento daquilo.
Um dia colhi flores no campo e enfeitei os seus cabelos. Maria sorriu, desfez
as malas e coloriu o meu armário.
Maria disse que já era ´Foda-se com as flores.´
Foda-se, tem cabimento? Não respeita mais nada.
O osso é muito pouco para um cão tão faminto, dou-lhe umas salsichas e ele agradece com o rabinho.
Um dia Maria acordou e anunciou que o
perfume das flores silvestres não lhe bastava mais. Queria channel n.
5. Eu disse ´Maria, destroem a floresta e os homens da floresta para fabricar
cheiro tão desnecessário.` Maria me olhou com raiva e eu ainda
tentei ´O pau-rosa, Maria, não haverá mais pau-rosa.` Mas
Maria não queria saber de nada.
Maria era só precisão ´Assine aqui, aqui e ali
.`vai
mostrando as linhas com o seu dedinho fino, era mais linda que uma laranjeira
carregada.
Maria venceu na vida. Vejo a distante e artificial. Não se chama mais Maria, chama-se Airama e seu sorriso preenche a tela. Não tivesse ela telefonado para dizer seu novo nome e o horário do programa, eu não a teria reconhecido. Nem a voz era a mesma, nem os gestos, as pausas eram calculadas, os ângulos estudados, as frases bem articuladas e sem sentido. Maria venceu.
O cão ainda está aqui, lavei-o,
alimentei-o, ele engordou
Olha para a televisão com a boca aberta
e a língua de fora e faz ah! Ah! Maria fala das estradas que galgara
para a fama, do casamento com um escritor misantropo, da sua alimentação
natural, dá conselhos de beleza
.Quanto mais revela, mais esconde.
Maria, que era bonita como uma laranjeira.
´Foda-se com as flores.` Disse Maria e bateu a porta. Aqui fiquei com
o cão que agora tem um nome, Orfeu. Orfeu faz ah! Ah! E eu passo a mão
na sua cabeça. ´Já vamos, Orfeu, já vamos`.
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