ÀS
PÁGINAS TANTAS
Jorge Gomes da Silva
As palavras rompiam caminho por entre o canavial, guiadas pelo vento e pela
vontade de alguém se fazer ouvir. No interior da cabana de madeira, casinha
de bonecas, um velho declamava poesia. Assim espantava a solidão e combatia
a loucura que tantas vezes o perseguia, nos sonhos acordados pelo frio da madrugada
e pela dor de uma saudade que o atormentava. Chorava e ria, gritava as emoções
de um estranho feito amigo, de um poeta desconhecido. Gostava de ler o amor.
Quem o ouvia era o cão, a única
companhia que restava, fiel. Focinho esparramado no soalho, orelhas levantadas
em sinal de atenção. Nunca se distraía, o rafeiro, convertido
à poesia na voz do dono, às palavras que entendia pelo tom. Era
o som que o fascinava, uivava de prazer. Uma vez por outra, adormecia. Para
acordar de seguida, com um berro que anunciava a chegada de um ponto final.
Parágrafo.
Alguns minutos de pausa, silêncio relativo, um cigarro à janela,
mais um copo de três. Tinto.
Um livro inteiro declamado até
quase ao nascer do sol que o afugentava para debaixo dos lençóis,
para a escuridão. Recusava o usufruto da luz. Em memória da companheira
que tanta falta lhe fazia e cujo rosto o astro-rei já não podia
iluminar, fugia. E recitava as leituras que ela lhe oferecera, uma vida inteira
de declamação que o velho substituía, rasgando o silêncio
nocturno com estrofes sem as quais não conseguia sobreviver. Gritava
o que lia, mas a única voz que ouvia era a dela. Gravada como banda sonora
para os livros que lhe deixara, uma herança forçada.
O rio que corria próximo, nem trinta metros adiante, beijava a margem
que o acolhia e o guiava, que delimitava o espaço das águas cristalinas,
o melhor caminho para a descida ininterrupta até ao reencontro na foz
com a força selvagem de um oceano sem fim. Eterno romance que a natureza
recriava, a cada instante, nas simbioses que fomentava e no cariz perpétuo
das interligações, uniões que lhe sublimavam a beleza e
evidenciavam uma busca incessante de perfeição. Como eram perfeitos
esses momentos de serena contemplação da vida que acontecia, que
fervilhava naquele rio, sentados na margem os dois. Como um só.
Essa manhã anunciou-se envergonhada,
cobrindo a casa isolada com um manto cerrado de nevoeiro. Cigarro apagado num
canto da boca, sem fôlego para o reacender, o velho não resistiu
ao apelo da luz e deixou-se ficar. Ficou prostrado pelo vinho, pela fadiga e
pela vontade de acabar com o insano ritual de luto profundo que nada de bom
produzia.
Esforçou-se por arrumar as ideias, por encontrar uma alternativa que
lhe preenchesse o buraco negro, o vazio que acabara de criar com aquela forma
de pecado. Assim o sentia, quase como uma traição. E aprendera
a amar a poesia, não lhe ocorreria renegar a sua tábua de salvação.
Flutuava nas palavras, como um náufrago, salvo à força
da sua vontade de perecer por uma fada-madrinha. Ou por um anjo, talvez...
Vislumbrou nesse instante, como uma premonição gravada em relevo
na espessa tela de neblina, a imagem de um velho sentado numa cadeira a escrever.
Poesia, intuiu. De pé, atrás do escriba, a figura elegante, difusa,
de uma bonita mulher. A sua. Que lhe acariciava os cabelos grisalhos enquanto
lia a emoção no papel.
O rosto do velho iluminou-se num sorriso. Num assomo frenético de energia, abriu todas as janelas da casa de par em par. Depois sentou-se na cadeira e começou a escrever poemas que ela lia, feliz outra vez, livre de todas as dores, dos grilhões que o oprimiam no corpo que abandonou, tombado sobre o parapeito da janela.
Poucos anos depois, alguém juraria
ter ouvido palavras de amor, arrastadas pelo vento, sussurradas pelo canavial.
E o uivo distante de um cão, assustadoramente parecido com o daquele
que encontraram um dia, morto de fome na cabana onde permaneceria até
ao fim. Por não conseguir viver privado da voz que o ensinou a amar a
poesia.
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