DE AMORES PRONTOS SURGIDOS EM SEGUNDAS-FEIRAS
Fábio Fujita

Foi sem querer, mas eu a ouvi perguntando para o balconista sobre uma nova edição de Por Quem Os Sinos Dobram. É bem provável que aquela referência (Hemingway!) deve ter conseguido enganar a mãe dela (certamente uma respeitosa professora aposentada) quanto aos motivos de se ir à Fnac numa segunda-feira de noite, em qualquer horário entre 19h30 e 21h30. Mas não a mim! Ninguém vai à Fnac numa segunda-feira de noite, sozinha, à procura do que quer que seja, o novo Hemingway ou a coletânea de idéias infalíveis do Alexandre Frota sobre porque seria legal matar anões a base de tabefes espalmados. Definitivamente, o final de semana da moça fora péssimo: ninguém pra ir no cinema junto, ninguém pra lhe perguntar "quem é meu bebezão?", uma barra de Toblerone imensa e, pôxa vida, qual o problema comigo?

Então, só podia!, bateu o desespero, e ela estava disposta, sim, a recorrer à auto-ajuda. Ela se traiu exatamente por causa da disposição das prateleiras: a literatura americana avizinhava-se à auto-ajuda e ao esoterismo, de modo que, no mesmo raio de alcance, suas mãos poderiam dar em Hemingway ou em Zíbia. E, imaginando-se não vista, não demorou para que seu pescoço crescesse em direção ao setor dos anjos cabalísticos e do homem que fez um milhão de amigos. Ela não ousou pegar qualquer edição que tivesse na capa céu estrelado ou gente sorrindo fazendo o V de vitória. Mas talvez tivesse na cabeça o título procurado e, assim que o visse, o meteria pra debaixo do Hemingway. Eu à espreita, disfarçando, folheando Salinger e John Fante.

Bonita, ela. Balzaquiana sofisticada. Um cabelinho loiro todo cacheado, passando dos ombros, rosto branco, dessas brancuras que transmistem uma frágil delicadeza e que aguça nosso (dos homens) sentido de proteção, e lábios estreitos, de um cor de rosa intenso, mas natural. Óculos charmosos, tipo-Liv-Tyler-na-festa-do-Oscar. E uma solidão na finura dos dedos, que reparei quando ela começou a folhear o Hemingway, tentando esconder (Eureka!) um exemplar suspeito, possivelmente com mais de um derivado da palavra felicidade no título. Era uma moça infeliz, era evidente.

E como entender que uma criatura que lê Hemingway, bonita, balzaquiana e tudo aquilo, tenha tido um final de semana tão ruim, sentindo-se a pessoa mais carente e incompreendida do mundo?

A) Ela é excessivamente exigente, e ninguém lhe satisfaz
B) Ela é excessivamente organizada, e aborrece todo mundo com seus detalhes sistemáticos
C) Ela não tem o mínimo senso de exigência, o que a faz incapaz de diferenciar o George Clooney do Papai Papudo
D) Ela não tem o mínimo senso de organização, e aborrece todo mundo porque não sabe em quem vestiu sua calcinha das Meninas Superpoderosas
E) O cronista é débil mental, e ela só estava comprando um livro, expediente comum em livrarias.

Parecia ser cheirosa - eu arriscaria Hot ou Laguna, quem sabe Calandre -, e geralmente estas intuições não falham, a não ser quando sim. Mas o meu impulso por cheiros tirou-me do meu anonimato. Passei por trás dela, vi a nudez do seu pescoço (lindo!), e pude fruir a sua sinestésica performance aromática em Givenchy. Desconcentrei. Linda, leve, solta, leitora de Hemingway, e etérea, fluida. Como, como, como? Por que, por que, por que?

Eu ali, testemunhando a alguns passos do meu nariz o amor pronto, surgido do solo fértil da Fnac, e, o que é pior, ou, o que é melhor, o amor vestindo saia com botas, uma blusinha branca e um casaquinho meigo de cor creme, com uma pitada de Hot e uma nuca branquinha fazendo cara de cachorro pidão. Naquela confusão em distinguir pescoço de dog, me atrapalhei e derrubei o Apanhador. Ela imediatamente agachou-se para pegar o meu livro e, por sua vez, deixou cair os seus. Então, a descoberta: o livro que ia por baixo do Hemingway dela era... Norman Mailer!

- Ah... desculpe... obrigada...
- Desculpe, eu... ah, Hemingway! E Mailer! - tentei puxar conversa
- É... Hemingway pra mim, Mailer pro meu noivo. Ele adora.

Eu estava estranhando, mesmo, quando digitei que o amor surgiu do sólo fértil da Fnac.

Mas ela bem que olhou a seção de auto-ajuda. Juro que não estou blefando!


 

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