O AMOR NO FLAGELO
Edson Campolina

As quaresmeiras dos jardins das casas exalavam o aroma que nostalgicamente me remetia ao alpendre da minha finada avó da terra querida. Aquela manhã de outono anunciava-se diferente das demais. O sol brilhava sem incomodar os olhos e os ventos da madrugada sopraram pr’além mar o lençol cinza da poluição, desnudando o horizonte verde da serra do Dedo-de-deus contrastando com um céu de azul leve como a infância.

Desci a ladeira de Santa Teresa em vagarosos passos degustando cada lampejo de imagem que minha lembrança aflorava. Meu coração bombeava silencioso para não acordar a realidade do cotidiano contemporâneo.

À espera do ônibus chamou-me a atenção uma família despertada pela desafinada e ruidosa sinfonia da metrópole, acampada sob uma marquise, aproveitando o calor da saída de ar do sistema central de um edifício.

A mãe erguia e baixava seu bebê segurando-o pelo peito. A criança em êxtase soltava agudas gargalhadas. O pai saltitava com a filhinha pela calçada pulando o cãozinho que tentava morder-lhes o calcanhar. Uma aurora em que o amor de uma família festejava mais um dia. E numa liberdade que somente na abdicação às ilusões de um sistema pode se manifestar.

Imaginei que história aquela mãe e aquele pai teriam em suas vidas. Certamente uma infância de purezas e simplicidade em seus dias. Minha máscara caía como ensina o pensador cristão: “é preciso tirar a máscara que nos impede de ver o respeito a qualquer vida como um bem em si com sua dignidade única”. O amor que dedicavam aos seus filhos, expresso em sorrisos e cintilantes olhares, num momento de flagelo na margem esquerda da cidade terrena realizava o pensamento agostiniano: “para poder elevar a graça, o cristão tem de rebaixar a liberdade”.

Certamente, para a humanidade representada por aquela parcela da sociedade terrena que pôde presencia-los e, indubitavelmente para uma parcela maior daquela parte, a flagelada família provavelmente não contaria feitos nem deixaria vestígios de obras - “A história nem suspeita de suas vidas”. Mas praticavam a liberdade que Santo Agostinho provoca quando nos lembra: “Não vás para fora, volta-te para dentro. É no interior do homem que mora a verdade”.

Talvez nem tenha passado uma dezena de minutos, o ônibus parou a minha frente e a prisão da rotina me empurrou pelos degraus da porta. A sinfonia da cidade se amplificou em meus ouvidos. Chorei disfarçada e intimamente a ausência de minha caçulinha. Meu corpo pediu seu abraço, um ligeiro espasmo doeu em meu peito e minha consciência pesou no prato de minha culpa a ingratidão e a indiferença. Contei as horas de saudades daquele longo dia.

 

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