QUEM DISSE QUE DINHEIRO
NÃO É IMPORTANTE?
Claudio Alecrim Costa
Contei as notas novas e entreguei ao meu amigo Salik. Fazia tempo que não vendia um de seus livros de poesia e nem conseguia trabalho que fosse. Teimava em viver do pouco que lhe rendia a vida de escritor e poeta. Jamais tentei contrariá-lo em seu firme propósito, ao contrário, o estimulava. Eu mesmo não entendia porque agia assim. Emprestei aquela quantia por pena, certo de que Salik jamais conheceria o sucesso de uma vida sem dificuldades econômicas das mais triviais.
Ele enfiou no bolso o dinheiro, sorrindo como uma criança que recebe a mesada, e me abraçou. Era um investimento afetivo que não visava qualquer retorno ou liquidez. Queria ver o Salik sonhando feliz. Precisamos alimentar as fantasias mais impróprias para dar luz ao espírito daqueles que amamos.
- Vamos comemorar, Afonso!
- Como assim?
- Um chope pela sua generosidade...
- Não gaste o dinheiro...Você vai precisar dele...
- Imagina! Você é o meu melhor amigo...Salvou minha vida!
Era impossível fazer Salik enxergar o lado prático das coisas. O presente era algo perene. O passado se evaporava rapidamente e o futuro, dentro do presente, o minuto seguinte.
Sentamos no bar e ele puxou as notas que havia acabado de lhe entregar como se nunca houvesse lhe emprestado. Parecia acreditar que tal dinheiro sempre estivera em seu bolso e sua dificuldade financeira não passara de um equívoco. Como um prestidigitador, criava ilusões onde me perdia tal qual uma criança fascinada diante de um mágico.
- Essa rodada é por minha conta...-
anunciou Salik
- Se você prefere assim...
- Faremos um brinde a nossa amizade...
- Claro!
Percebi que seus lábios estavam lívidos e que sua mão tremia estranhamente.
- Você está bem, Salik?
- Estou ótimo!
Levou a mão ao peito e respirou com dificuldade. Parecia um enfarto anunciado. Suava muito e perdera um pouco da coordenação motora. Não demorou muito para que desabasse sobre a mesa.
O garçom veio em socorro e me ajudou a levá-lo para um sofá que ficava na entrada no bar.
- Temos que chamar uma ambulância...-
falou o assustado garçom.
- Ligue, por favor...Eu fico com ele aqui.
O homem se retirou veloz e, por um instante, olhei para o bolso de Salik, onde o empréstimo que eu havia lhe adiantado estava. Pensei em pegar o dinheiro caso Salik tivesse que ser removido. A idéia não saia de minha cabeça e eu me culpava por dividir minha preocupação com detalhe mesquinho. Senti-me um avarento. Tentei reanimá-lo, mas estava definitivamente preocupado com o dinheiro.
Escutei o barulho da sirene da ambulância que se aproximava. Pessoas se juntavam a nossa volta. Devia enfiar a mão no bolso dele e guardar o dinheiro. Seria prudente. Repetia para mim mesmo, como uma sentença moral.
A ambulância chegou e os médicos deram os primeiros socorros a Salik. Teriam que removê-lo para um centro de tratamento intensivo.
- Sou amigo dele...
- Ele tem família?
- Não.
Entramos na ambulância e, dentro do carro, cuidados como soro, máscara de oxigênio eram providenciados com rapidez. Meus olhos não desgrudavam do bolso de Salik. O idiota morreria e junto levaria minhas economias. Condenava-me por pensamento tão desumano. Jamais veria meu amigo novamente e o dinheiro que não tinha mais dono. Devia estar preocupado com Salik. Estava morrendo, mas não parava de contabilizar o prejuízo. Via o defunto com os bolsos recheados de notas graúdas que passara anos juntando.
Salik abriu os olhos e sorriu. Falou, ofegante, que não me preocupasse. Estaria logo bem. O carro ia aos solavancos. Aproveitei para resolver a questão material.
- Você ficará bem, Salik...
- Estou vendo uma luz...Será que estou morrendo?
- Não fale besteira...Essa ambulância parece uma nave espacial
de tão iluminada!
- A luz que vejo tem um brilho incomum...
- Me dê o dinheiro...
- Que dinheiro? perguntou o médico.
- Nada! É uma brincadeira que fazemos nas horas difíceis...Serve
para aliviar o estresse.
- Pegue o seu dinheiro no meu bolso, Afonso...
- Que dinheiro, Salik? tentei disfarçar a situação
bizarra.
- O que você me emprestou...
- Está preocupado com o dinheiro que emprestou para o seu amigo?
insistia o médico sem acreditar no que ouvia.
- É um assunto particular...- tentei contornar.
- Não se preocupe doutor...Não vou morrer sem pagar o empréstimo
que meu grande amigo me fez.
- Não diga isso, seu idiota...! Quer dizer, meu amigo...!
Debrucei-me sobre o corpo de Salik e simulei um choro pra lá de convulsivo. Estava claro para mim que eu deveria estar no lugar do moribundo. Não valia um tostão furado. Minha vida era um embuste, uma farsa que acreditara até aquele momento servir para algum fim.
- Doutor, salve esse homem! Eu o amo!
Testemunha solitária de uma tragédia
gay que eu simulara, o médico ficou estático, enquanto Salik sorria
e dava sinais de estar no paraíso, fazendo uma farra com anjos e querubins.
Tudo, irremediavelmente, patrocinado por mim.
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