SOPHISTICATED LADY
Bárbara Helena

"And when nobody is nigh, you cry,
You cry, you cry."

Quando Billie ficava absurdamente triste se agarrava aos baseados.

Nós todos fumamos, em épocas diferentes, junto com os dry martinis de Marina, ou as cervejas de Mimi. Eu me embebedava de vinho barato e me via, a música soluçando de beleza.

Billie preferia o uísque paraguaio. E quando estava absurdamente triste se apegava aos baseados e tocava Sophisticated lady para Marina.

Ela não entendia a homenagem. Nunca considerou a hipótese de dar a ele um pequeno pedaço de seu corpo alvo. Marina estava nos cigarette blues até surgir o empresário que iria tira-la do anonimato das nossas estradas rotas.

Com seus cabelos dourados e olhos azuis, fazia uivar os rudes caminhoneiros, mas nunca percebeu sua presença. Era como uma estrela, distante, abstrata, intocada por toda aquela sordidez.

Billie percebia isto e às vezes ficava absurdamente triste e fumava mais baseados do que o normal.

Uma noite, em São Tomé da Serra, depois de um espetáculo lancinante de guitarra - Sophisticated Lady para Marina - antes dos banheiros e do café, encontrei Billie no camarim, rosto vermelho, olhar brilhante, vago. Tive certeza

- Você anda cheirando?

Ele me olhou irritado, não respondeu.

- Vi o Mejicano com você, no intervalo...

- Deixa de ser babaca, falou? Cuida da droga da sua vida!...

Eu fiquei calada. Porra, não era da minha conta, era? Que se danassem ele, Marina, Mimi e toda a população desta merda de Terra redonda. Nunca mais toquei no assunto.

Éramos cometas em cada uma daquelas cidades escondidas, retornando um pouco mais velhos, mais gastos, mais amargos, derramando nosso sangue blues pelos tristes bares das periferias decadentes. Como as cortinas gastas e os falsos cristais do lustre - um cenário ultrapassado.

A polícia pegou Billie numa batida idiota - Colette, o travesti velho, deu uma navalhada em Luigi, seu amante jovem. O sangue e a gritaria histérica atraíram a atenção dos Homens. Eles deram uma vistoria nos camarins e acharam o pó.

Fui visitar Billie na cadeia.

Abatido, os cabelos despenteados, cheiro de urina e um sabor de coração sujo.
Tivemos que improvisar um show sem guitarra, num barzinho em frente á funerária. Só com o piano de Marina que se acompanhava todas as noites cantando Sophisticated Lady. Sabe-se lá porque. Marina era estranha. Mas tinha uma voz linda, um timbre aveludado ,às vezes rouco, uma alma de blueseira.

Os participantes dos velórios gostavam dos blues lancinantes, da beleza de Marina ou da bunda de Mimi. O fato é que tínhamos casa cheia todas as noites.

Enquanto Billie aguardava julgamento, cantamos para acompanhantes de defuntos, nós, mais mortos do que eles, em nossos caixões de luzes azuis.

Um dia não agüentei, fui ao delegado e abri meu coração. Falei da estrada empoeirada, dos sanduíches frios, dos clientes sem paciência e sem educação, dos ouvidos duros, dos assentos nos ônibus arrebentados, das noites mal-dormidas, de toda a humilhação... um blues interminável e dolorido.

O Homem entendeu talvez, não sei. Soltou Billie na sexta-feira, de surpresa.

Ele apareceu no meio da noite. Marina cantava Sophisticated Lady.

Ficou ali, parado, ouvindo, nós no backing vocal, meu coração na boca, morrendo. E a música quase doentia de Marina, linda, longínqua.

Billie apanhou a guitarra e acompanhou. O blues subia pelos seios dela ,tocava os cabelos, dava para sentir o cheiro da paixão. Um gemido de cão abandonado, dolorido, sinuoso. A voz dela acompanhava rouca, estranha, apartada, indecifrável.

Eu olhava para Billie ali, envelhecido, ouvia o lamento da guitarra, a voz dela ecoando e então eu soube que era amor o que sentia.

Esfrangalhado, encardido ,esgarçado, roto ,amarfanhado, mas amor.

Me suicidei nesta noite com dez tequilas, três dry martinis e cerveja. Fui enterrada em mim sem choro ou velas.

 

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