OBSESSÃO
Raymundo Silveira

 

Estou só. Absolutamente sozinho! A impressão é que uma bomba nuclear de nêutrons arrasara toda a população da cidade e - devido a uma circunstância que ignoro - poupou apenas a mim mesmo. O sentimento de solidão extrema, de abandono, de quase desespero está infinitamente acima do imaginável e, quiçá, também do suportável. Surpreendentemente, tudo aquilo que não obedecia à lógica molecular dos organismos vivos permaneceu intacto. Sou, portanto, um espectro vagando angustiado pelos corredores e salões do museu, onde o silêncio e a quietude são tão opressivos a ponto de me certificarem ser a iminente loucura, só uma questão de segundos.

Encontro-me agora diante da tela "Cadeira de Braços de Paul Gauguin". Há, sobre ela, livros, uma garrafa de vinho e uma vela acesa. A dependência neurótica do autor em relação ao outro artista está mais do que evidente. Após dois anos de vida em comum, suas relações se deteriorariam. Contudo, em 1888 estavam em sua plenitude, pelo menos no que dependia do primeiro. Ao repassar estas memórias, a minha insuportável angústia se exacerba ainda mais. Há várias modalidades de solidão, raciocino, e em todas elas se vislumbra algum tipo de saída. Esta que estou a sentir agora, porém, é a mais dilacerante de todas, pois para ela não há o menor vestígio de esperança.

Outro óleo sobre tela: "Avenida de Álamos no Outono". Ao fundo, um minúsculo abrigo que mais sugere exígua guarita; um cubículo, isolado de qualquer outra obra de humana origem. Os álamos enormes, contudo, e o amarelo-avermelhado de sua folhagem outonal sugere antes um incêndio de vastas proporções. Uma figura humana espectral, com a qual me identifico, atravessa a alameda de fogo indiferente a tudo. "Quatro Camponeses à Mesa". Este quadro serviu de estudo introdutório para "Os Comedores de Batata". As cores são opressivas, apesar da predominância do verde. Mas esta cor lembra menos o frescor das plantas do que nojentos líquidos exsudativos de corpos em decomposição. O semblante das figuras é sombrio e não denota o menor indício de apetite. O ambiente é escassamente iluminado e os comensais parecem participar de um macabro "banquete" antropofágico. "Navios No Cais de Antuérpia". As embarcações não estão em alto mar, todavia, nuvens ameaçadoras formam-se sobre elas e dá para se pressentir desastre iminente. O esmaecido das cores e a desolação da paisagem não sugerem quaisquer ações preventivas e nem sequer apreensão por parte de duas esquálidas figuras humanas que por ali perambulam. Ao contrário, tudo retrata indiferença.

"Caveira Com Um Cigarro Aceso". O limiar de minha tolerância ao estresse já estava muito próximo de ser ultrapassado. Todavia, aquele esqueleto, longe de exacerbar a minha angústia, restituiu-me um pouco de conforto, pois afinal deparei com algo familiar. Paradoxalmente, os restos da morte nunca me assustaram. Nem mesmo nos primórdios da minha vida acadêmica, quando passei a conviver com eles diuturnamente. Minha única associação diante deste óleo sobre tela envolve o próprio artista, pois sabia, de antemão, ser o tabagismo inveterado a causa de uma das incontáveis moléstias que o atormentavam.

Chego diante do "Auto-retrato Com Chapéu de Palha" (Paris, outono de 1887). O pintor estava com trinta e quatro anos mas via-se a si próprio como um ancião cujo semblante encontrava-se vincado pelos traços de irreprimível amargura. O amarelo da tela não lembra nem de longe nada daquilo que é agradável e se associa a essa cor: nem o sol, nem o ouro, nem o luar. Sugere, isso sim, osso velho de sepultura, gema de ovo podre ou simplesmente a palha ressequida do seu chapéu. Ademais, sua própria figura se torna insignificante e se confunde com o fundo do desenho que parece salpicado de lama.

A minha tensão é opressiva e intolerável. Não suportando mais, desato a chorar convulsivamente o choro incontido dos desesperançados. Melhor, talvez, seria dizer dos desesperados, mas não cheguei a tanto, pois uma réstia de luz e uma centelha de lucidez ainda me acompanhavam, embora idéias suicidas me obcecassem. É quase a sufocar que saio do edifício do Museu Vincent Van Gogh e atravesso a Paulus Potterstraat. Do outro lado da rua encontro um bar. Completamente abandonado, mas um bar. Tomo de uma garrafa de absinto e abro-a nervosamente. Trêmulo, despejo todo o conteúdo num copo enorme e sorvo, com sofreguidão, tudo de uma vez. Quando termino retorno para a rua. Amsterdã palpita de vitalidade!


 

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