AURORAS
Lilly

 

Querido diário, esta será mais uma confidência tímida e pudicamente camuflada, escondida e segredada entre minha alma e tuas páginas esmaecidas pelo tempo. Não tenho a intenção de transformar estas considerações em carta remetida - muito embora haja um infeliz destinatário e, creio eu, viverá bem mais feliz se nunca chegar a recebê-las no seu país tão distante dos longes nos quais habito.

Chego à ousadia explícita de até selar esta possível carta...Mas há coisas na vida que melhor se dizem calando...E calo. Mas é preciso que deixe aqui registrado o valor do meu silêncio. Ele é caro e muito tem me custado. É que amo. E isto, demasiadamente. Esse amor não foi de um dia, de uma estação, muito menos de um coração que adolescia. Ele é. E sendo, me faz ser. Muito embora e apesar de. Engraçada constatação esta: ainda que não tenha mais conserto, bem consertado estará. Dei-me conta de como sou feliz por vivê-lo.

E assim amo: num idioma só meu... Nesse linguajar, expreso-me deselegantemente todavia, em diálogos mudos permeados de vários risos inaudíveis...E penso alto: sei que o objeto do meu agrado me faz feliz e isso me deixa tranqüila. E não há no mundo alguém que conheça o meu amor mais e melhor do que eu...Por isso, às vezes, bem tarde da noite, me pego cantarolando cantigas de amigo e canções antigas em francês provençal: este amor antigo e amigo me habita e me faz este bem.

Confesso, no entanto, querido diário, quer você queira ou não queira, que ele existe. Não é, simplesmente, fruto da minha imaginação de criança que amadureceu sem viver as complicações da juventude... Não é obsessão: o amor que trago em mim é tão simples que dá dó. Sem contra-indicações. Sem complicações. Nada de soma dos quadrados dos
catetos de uma hipotenusa. Não houve tempo para cálculos. Nem para avisos prévios. Simplesmente, um dia cheguei em casa com ele e me deipor satisfeita. Entendi que amava e pronto. Nada de mais. Nem de menos. Só.

Como toda verdade vem numa embalagem simples, esta também não me teceu muitas considerações. Não acredito que um sentido tão belo possa vir para complicar. Se for complicado demais, acredite, diário: não é amor. Amor é amigo, simples e verdadeiro. É assim que eu digo e é assim que é. Nós é que estocamos boas quantidades de mentiras aceitáveis para nos recolhermos num cantinho seguro, fingindo o melhor que podemos que
estamos certos. Nada como aprender a camuflar bem para nos sentirmos inteligentemente super-humanos... E o pior é que o mundo percebe que mentimos. Menos a gente, diário.

E então, chega o dia que chamo de “aurora”. Um dia que se dá lá no norte da nossa alma, tal qual a Aurora Boreal no norte da Lapônia e que, além do Círculo Polar Ártico e das geleiras internas de nossas vidas, esse fenômeno natural faz com que nosso sol não se ponha mais até que a verdade nua e crua nos descubra e nos ponha visíveis sem trégua. As 24 horas do dia sem direito à noite.

Nesse sol da meia noite, sem que nos demos conta, nos deparamos com a brilhante realidade. Manteremos o máximo de pudor e prudência e um limite inegociável de decência mas, quer fiquemos juntos ou separados, quer sejamos considerados certos ou errados, dos longes ou de perto, como uma Aurora Boreal autêntica produziremos nas esferas mais profundas da nossa atmosfera, uma iluminância de invernos que será nosso alumbramento...Uma luz que nos atinge com a força de uma obsessão para transformar-se em doce e grave adoração... E assim amamos, querido diário.


 

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