A MANGA
Edson Campolina

Vencia calmamente a rua de pedras-sabão escorregadias. Ouro Preto vagarosamente era engolida pela neblina que descia suas montanhas, uma avalanche de densas nuvens. O aroma do trigo assando no forno assinava o convite ao acolhimento do lar.

O ritual da visita à padaria cumpria-se dentro do horário esperado por ela naquele final de tarde invernoso. Media seu tempo no itinerário até em casa. Uma fila mais longa na busca do pão de cada manhã e ele ocupou-se em preparar a argumentação.

Venceu os degraus da confeitaria parando em seu último, a aguardar o momento do registro de seu pedido ao homem do caixa. A fila cruzava o alto dos degraus. Absorto, sentiu o leve choque no ombro e o murmúrio da moça que entrava:

- Perdão!

Inclinou levemente a cabeça em sinal de concessão, voltando-se ao vagar de seus pensamentos.

Foi recebido com o vespertino e corriqueiro beijo da esposa à porta. Ofereceu-lhe o pão e o leite e cuidou de seu banho. Subitamente o banheiro é invadido pela mulher em decididos e pesados passos.

- Que mancha de batom é esta na manga de seu casaco?

Levantou a face em direção ao ralo chuveiro usando aqueles segundos para a compreensão do nexo da questão. A água quente não afluiu a memória de seus neurônios. Buscou na retrospectiva do dia um fato que cessasse a confusão de sua esposa.

- Não sei. Não imagino como posso ter me sujado? Esta era a alternativa à mentira cabível naquela situação. - Sinceramente não sei.

- Sei que saiu às cinco do trabalho. Chegou meia hora mais tarde. Então foi no caminho. Só pode ter sido. Por quê não diz a verdade? Ah! É alguma das coleguinhas do trabalho. Aquele antro só tem mocinhas degradadas. Devem vir no ônibus juntos, aos beijos.

A certeza da traição só não vencia a dúvida que o atormentava. Dos confins da memória não içava qualquer situação vivida no trabalho que envolvesse a possibilidade do acontecido. Refez seu caminho.

- A Padaria!

Seu pensamento quase ecoou nas paredes do banheiro. O lampejo o paralisou. Seria estapafúrdia desculpa. A mais doce e liberta das esposas não imaginaria uma fatalidade banal como a sua.

- Não me darei o trabalho de lavar esta vergonha!

Sem se julgar vencedora ou satisfeita, embolou o casaco no galão de latão derramando álcool e incinerou a prova do pecado, vociferando a ofensa sofrida.

Ele carregou por seu futuro a culpa pelo não cometido e pela omissão do acontecido. Seguro de que a alternativa da verdade seria maior ofensa à louca obsessão da esposa.

 

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