A MULHER E STRAVINSKY
Claudio Alecrim Costa

 

Pela lente telescópica eu me aproximava e quase podia tocar a vizinha do prédio em frente. Nada se comparava à beleza daquela mulher. Passava dias confinado no apartamento, entre garrafas de cerveja e o Stravinsky que ouvia de um velho disco de vinil arranhado, combinando polirritmia aos chiados como uma chuva de areia num telhado de vidro. Eu me torturava pela visão feminina que acenava lânguida em meu atormentado universo solitário.

Estava perdendo a razão enquanto Nijinski bailava sobre minha sofrida alma. O telefone cansado não tocava e o mundo me esquecera. Havia morrido e nascido sob a luz tênue do abajur, rodeado por mariposas gigantes que sobrevoavam ante as paredes do apartamento, desaparecendo no teto ou se fundindo ao mobiliário bíblico, neoclássico e atonal. Tudo se transformara em Stravinsky. Mal podia imaginar aquele disco sendo meu réquiem: um morto impregnado de sonhos insólitos.

O toque estridente da campanhia misturou-se ao Stravinsky gritando, como vozes de um coral, tango, ragtime e todos os sons absolutamente musicais que haviam possuído meu espírito sem possibilidade de exorcismo. Vivia um sonho sem portas, janelas, céus, natureza. Apenas a vida que se diluía à minha volta em imagens surrealistas de Salvador Dali.

Quando abri a porta, lá estava a mulher que passara dias vigiando, com uma das mãos apoiada no portal e um sorriso simétrico. Era mais linda de perto. Olhou-me muda e entrou, sem que eu sequer a convidasse.

- Isso aqui está uma bagunça...Que música horrível! - disse-me ela.
- É Stravinsky!
- Não conheço...
- Qual seu nome?
- Laura.
- Prazer, Afonso...
- Oi...
- Você me viu...
- Olhando pela janela como um tarado? Claro.

Deu uma gargalhada sacudindo seu corpo delgado. Estava com uma saia curta que deixa ver suas pernas longas como colunas gregas. O cabelo despenteado acrescentava elegância. Usava salto alto e uma blusa encardida e transparente sobre seios adolescentes, firmes e pequenos.

- Não consigo viver sem a sua visão...
- Que lindo isso...(Mais risos)
- Veio aqui para me ridicularizar?
- Para salvá-lo desse Stravinsky. É horrível...
- Já perdi a noção de quanto tempo estou aqui...
- Não há tempo agora, Afonso...
- Como assim?

Chegou perto e me beijou lentamente. Seu corpo encostava-se no meu, débil e embriagado. Era frágil. Toquei os pequenos seios e toda a estrutura estremeceu num prazer mudo. Passou a me beijar com intensidade e então consegui penetrar, em pé, oscilando pela sala, esbarrando em objetos até cairmos no sofá. O gozo veio rápido e sem controle, me esvaziando, enquanto ela falava palavras estrangeiras com os lábios frios tocando minha orelha...

- Desculpe... - sussurrei.
- Por quê?
- Faz tempo que não transo...
- Foi ótimo...Você me devorou...
- Eu te amo.
- Estarei sempre com você...Agora tenho que voltar...

Levei Laura até a porta e nos despedimos com um beijo.

Caminhei à janela e pude ver a mulher que desejava ardentemente. Num gesto mecânico, repeti a sinfonia no toca-disco. Talvez Laura nunca estivera em meu apartamento. Sem ela e Stravinsky meu mundo se reduzia a afetos previsíveis, amigos fraternos, sonhos comuns: à torturante ordem e rotina das quais havia me libertado desde os primeiros dias de minha loucura.

 

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