O FANTASMA NO ESPELHO
Anna Carolina N. Fagundes

I have seen a trace of strain
In other's eyes not spoken
I must admit that I enjoyed their pain
But this time it's me that's broken

(Pete Townshend, “The Sea Refuses No River”)


Ergueu o corpo devagar para fora da cama, cada passo parecia causar um terremoto. Olhou em volta, procurando alguma coisa familiar – um rosto, um móvel, uma foto na
parede – mas não conseguia reconhecer nada nem ninguém. Sabia que deveria estar em casa, mas pela primeira vez em dias não conseguia raciocinar. Aceitou aquilo como
uma bênção, ao invés de uma maldição: por que ter que pensar, se pensar lhe causava tanta dor?

Nos últimos três dias seguira pelas ruas da cidade como um fantasma, obscecado pela imagem nítida de Esmeralda. Sabia que Esmeralda estava morta, e isso não era
novidade: ela tinha sido morta há seis meses, ele mesmo cuidara do enterro. Mas naquela semana ela parecia mais viva do que nunca, dançando a seu redor, aparecendo nos lugares mais estranhos: no reflexo de um espelho, atravessando uma rua no centro da cidade, uma voz que cantava longe, mais perfeitamente audível. Passara a perseguir as aparições, para o desespero dos amigos, que tentavam colocar algum senso se ridículo dentro da
cabeça do colega.

Mas nada adiantaria, nenhum apelo à razão faria sentido. Enquanto Esmeralda aparecesse daquele modo tão fragmentário – um sorriso, uma frase, uma imagem refletida – ele não descansaria. E andara desesperado por três dias, até cair em casa, cansado, desterrado
como estava, abandonado à própria sorte.

Às vezes ele se lembrava, num segundo, dos amigos que tivera que consolar pelas noites da cidade, abandonados por mulheres e por homens. De como ele não desejava ter
aquele brilho de desespero nos olhos ao amar uma pessoa – o fogo silencioso da obsessão por um objeto que não estava mais a seu alcance.

Desesperara-se ao se ver no espelho naquela manhã, e ver em seus olhos aquele mesmo brilho infrutífero. Esmeralda, longe demais para ser tocada, mas perto demais para lhe assombrar, se recusava a ir embora sem leva-lo junto. E ele sabia que mais cedo ou mais tarde ela teria o que ela queria, e ele deixaria que ela o levasse de vez. Para não ter que pensar nunca mais.


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