ASSIM
VIVIA AÍDA
Adriana
Vieira Bastos
Conforme suas lembranças, começara na infância sua sina de pecadora. Resmungos contra as proibições paternas, pecado mortal. Brigas com os irmãos, dez Pai-Nossos. Inveja da boneca da coleguinha, vinte Pai-Nossos e vinte Ave-Marias. Determinados religiosamente pelo Padre Onofre, nas confissões de domingo.
A adolescência, então, chegou para tornar inquestionável sua vocação para pecar. Da inveja da boneca, passou a ter inveja do namorado da coleguinha e da própria coleguinha, que já não era tão coleguinha assim. Transformara-se na menina mais disputada do colégio. Haja reza!
O pior é que o tempo passava e o padre Onofre, com seu olhar inquisidor e silencioso, não a deixava esquecer sua sina.
Conforme seu corpo se transformava, desejos estranhos insistiam em apoderar-se de seus sonhos. Não sabia o que fazer! Tentou a mãe, mas esta, Dona Raimunda, mulher de moral rígida e sem nenhum preparo, só fez piorar as coisas. Mandou-a se confessar em pleno dia de semana.
Padre Onofre, horrorizado, quase a excomungou. Ordenou-lhe um dia inteiro de reza, jejum e que não saísse do quarto. Quem sabe assim, Deus a salvaria das armadilhas do demo!...
Seria uma perdida? Conviver com a dúvida parecia ser o maior castigo que Deus pudera lhe impor.
Rezou, e tanto rezou, que por um tempo aquietou-se. Mas isto foi só até deixar seu tolo coração jogá-la nos braços de Armando. Pecado consumado, casamento realizado! Estava em jogo a honra da família...
Numa sexta-feira nublada, no altar da paróquia da comunidade, sob o olhar reprovador de Padre Onofre, jurou a Deus unir-se eternamente a Armando. Era a sua sina de pecadora perpetuando-se...
Os anos passaram-se, e firme no seu juramento engolia aquela união de desinteresse, como se fosse a penitência maior a ser cumprida para galgar o perdão e graça celestial.
Às vezes, quietinha no seu canto, praticamente intocada por Armando, quase chegava a blasfemar contra a vidinha medíocre que levava. Nesta hora lembrava-se da fala materna. Pelo menos o pobre coitado mantinha a família. Quantos nem isto faziam! Devia dar graças a Deus!
Envergonhada, fazia o sinal da cruz, rezava um credo e caprichava no doce preferido do marido.
O tempo passou um pouco mais e, próximo de completar 35 anos de casada, surpreendeu-se com Armando partindo com a jovem que o fizera redescobrir os prazeres da vida.
E não é que, de todos os pecados experimentados, este que não era o seu, a transformara, por tabela, numa abominável pecadora.
Pelas amigas passara a ser temida. Medo que lhes roubasse os maridos. Pelos homens, desejada a qualquer hora do dia ou da noite. Como um gado marcado a ferro em brasa, sentia impregnado na testa a alcunha disponível. Para Armando, tinha que continuar discreta no seu canto. Era o que ele esperava da mãe de seus filhos. E, para o Padre Onofre, traidora. Não cumprira o voto da indissolubilidade matrimonial, feito a Deus, na sua presença.
Teria salvação? Como a esperança poderia habitar no universo de uma pecadora nata?
Assim vivia Aída até o dia em que cruzou com Antônio, seu novo vizinho. Homem simples, descomplicado, de bem com a vida, com um sorriso capaz de levá-la às nuvens.
Nuvens? O chão lhe faltou. Não tinha mais dúvidas: era o golpe fatal. O Demo resolvera morar ao lado!...
Passou a ter surtos de calor. A pressão oscilava. Suspirava pelos cantos da casa, mas, vira e mexe, pegava-se limpando a calçada.
Começara a ver o céu do outro lado da janela.
Suas amigas mais íntimas, Jacyra e Carmelita, passaram a se incomodar com o seu repentino ar jovial. Não lhe cabia bem. O que o povo iria dizer? Precisava pensar nos filhos...
Falando em filhos, Armandinho, o mais velho, que antes nunca tinha tempo de visitá-la, dera para aparecer. Olhava-a desconfiado, como se quisesse lhe arrancar, à sangue frio, o terrível segredo. Segredo que nem ela sabia existir.
Interessante! Sua solidão, até
então não incomodava a ninguém. Era naturalmente esperada.
Já este prenúncio de felicidade atordoara a todos.
Algumas amigas aflitas a aconselharam a procurar uma médica. Estava
parecendo coisa da Menopausa. Todo o cuidado era pouco. Joana,
aquela da rua de baixo, chegou a ficar doidinha.
Menopausa? Pensou, olhou às amigas, amargas como ela também sempre fora, e sorriu. Era sua juventude batendo-lhe a porta, sem pedir licença.
Estava na hora de recuperar o descontrole da juventude e permitir-se viver o lado bom do pecado. O que tinha mais a perder?! ...
Num belo sábado, Antônio convidou-a para jantar na casa dele. Respirou fundo e aceitou. Beberam, conversaram, dançaram e aos poucos foi entrando em contato com emoções que sempre estiveram sufocadas no seu peito.
Se era coisa do demo não sabia, mas resolveu ir até o fim. Chorou, sorriu e, vivendo a torrente de emoções despertadas, deixou-se possuir e possuiu...
Ao amanhecer, sua força era tanta que decidiu se libertar da obsessão pelo pecado imposto pela moral humana. Nada e ninguém mais a impediria de experimentar os prazeres que a vida ainda tinha a lhe oferecer. Era o fim de sua sina como pecadora.
Radiante como nunca, convidou Antônio a ir com ela à temida missa de Domingo.
Entrou na Igreja, orou e, na hora da comunhão, caminhou segura até o altar, sob o olhar de incredulidade das amigas e do Padre Onofre. Pela primeira vez na sua vida, sentiu-se entrar em contato com o seu verdadeiro Deus.
Após este momento mágico, levantou-se, deu as mãos a Antônio e saiu para nunca mais voltar...
Hoje, sabedora de que o verdadeiro Deus não se alimenta da infelicidade de seus filhos, reúne-se, aos domingos, com amigos que realmente se interessam pelo seu bem estar e, com eles, comunga o seu direito de ser feliz...
Afinal, como dizia o velho ditado: Deus
é pai, não é padrasto....
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