NO OLHO DO FURACÃO
Virgínia Pinto

“A vida é o que acontece,
enquanto você está ocupado,
fazendo outros planos”.

John Lennon


Hoje, absolutamente imóvel e deitada em uma maca durante um exame de medicina nuclear, vi, detalhadamente, os últimos meses de minha vida.

A observação da enfermeira era de que o exame seria feito em quarenta minutos, sem me mexer, e uma boa idéia seria dormir. Impossível desligar-me daquela máquina indo e vindo sobre mim, frente e costas, então comecei a pensar na vida. Eram exatamente dois pontos que mais me chamavam a atenção. Um deles, o primeiro, era a viagem que fiz ao Egito no ano passado e o outro, o tratamento médico que estou finalizando. Brincava com a lembrança de ambas situações e me sentia estranhamente reconfortada.

Era outubro e a primavera trazia no ar o cheiro de novas descobertas. Atravessei o Atlântico e o Mediterrâneo, mudei de continentes e estação (outono) aterrissando na Terra dos Faraós. O clima era quente e seco, como o que havia deixado aqui, mas a semelhança entre os mundos limitou-se ao calor das estações.

Vivenciei sonhos. Naveguei no Nilo de Cleópatra com os olhos fechados sentindo o vento na cara, num barquinho a vela guiado por um autêntico egípcio. Deslumbrei-me com o enigma das Pirâmides, andei de braços abertos num camelo, me extasiei com a onipotência da Esfinge e mergulhei de cabeça, na história no Museu do Cairo.

Abri os olhos. A máquina já estava sobre meus pés, calculei que estivesse na metade do exame e continuei sobrevoando os fatos.

Caí em janeiro. Ano novo, vida nova, amor novo. Sorri em silêncio.

O tempo voava porque os sonhos eram tantos e a vida começava a içar velas incontroláveis: trabalho, pós-graduação, projetos profissionais novos, festa de confraternização dos pacientes do hospital, congressos futuros, estudos futuros, amor novo presente e para estar sempre em ordem para tudo isto, um check-up.

Novidades nos exames engavetados por absoluta falta de tempo de voltar ao médico. Consegui pensar em mim, em março. Novos exames e a sugestão de uma cirurgia de tireóide com finalidade de prevenção futura.

O maior problema era encaixar o tal procedimento em minha agenda de prioridades. Consegui. Primeiro de abril foi o dia escolhido por pegar um gancho de feriado e não perder muito tempo. Tudo certo. Pronto. Recuperação perfeita em dez dias e lá estava eu novamente içando velas guardadas a contra-gosto.

A bomba veio num fax. Diagnóstico final: câncer de tireóide. Sentei-me no chão e chorei. Uma frase me martelava a cabeça: A brincadeira acabou!

Flutuaram lembranças de dias difíceis. Rio delas hoje por que eu não aceitava nova cirurgia, o que seria imprescindível para total cura da doença, pelo absurdo motivo de que não tinha dia livre em minha agenda, para parar e me submeter a ela.

Se você não aprende no amor, a vida te faz aprender na dor. Brigava interiormente com a possibilidade de encontrar em algum lugar do mundo, um médico que me dissesse que não precisava operar novamente. Procurei vários. Queria continuar conduzindo a minha vida com as ordens em minhas mãos. Todos (seis) me falaram que o melhor para minha completa remissão da doença era operar novamente e ficar tranqüila para sempre.

Ainda sim eu relutava com a hipótese de interromper minhas atividades. Como poderia suspender tudo o que estava em andamento? Tinha outros planos enquanto a vida continuava.

Enquanto atendia a uma paciente, olhei para a imagem de Cristo que tenho em minha parede. Uma voz interior me chacoalhou:

- Isto mesmo! Continue assim cega e absoluta e daqui a alguns anos não haverá nem mais agenda...

Entendi em um segundo o recado embutido em tudo o que estava acontecendo há meses. Resolvi naquele instante que iria fazer o necessário, no tempo que precisasse e que a partir daquele momento eu me dedicaria, com afinco, à minha VIDA.

O exame estava terminando e a retrospectiva também. Segunda cirurgia tranqüila, recuperação maravilhosa, reflexões salutares.

A primeira segunda-feira que voltei ao trabalho tinha um sabor inigualável. Eu estava sentada ao volante da minha vida novamente, sob a direção do vento e o sol brilhava tão intensamente que parecia querer me dar boas-vindas. Uma sensação de gratidão para com o universo me envolvia. Sentia o valor de ter tido onde me tratar, num país onde poucos têm acesso à saúde, eu tive tratamento e cura de primeiro mundo.

Não era uma simples volta ao trabalho, como tantas fiz ao longo dos últimos vinte anos. Naquele dia eu voltava em paz, para as infinitas possibilidades que um só dia nos traz e muitas vezes não vemos por que estamos ocupados, numa torrente de anseios e desejos, fazendo inúmeros outros planos.


Agradecimentos

Às minhas filhas, familiares, namorado, amigos e pacientes que estiveram presentes de alguma forma nestes momentos, me dizendo em silêncio, que me amavam.

 

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