QUESTÃO
DE SUGESTÃO
Ubirajara Varela
O ônibus rodava mais uma viagem corriqueira. Estava quase lotado. E fazia bastante calor naquela tarde. O motorista em seu assento na dianteira, com o mal-humor habitual, reclamava do trânsito com grunhidos e rosnados. O trocador, com um walk-man nos ouvidos, não dava atenção a nenhuma palavra ou outro barulho soando no interior do veículo. Uma parada. Subiram dois senhores de idade avançada. Só havia um único assento disponível e os dois senhores resolveram desprezar as gentilezas e disputar a vaga.
- O senhor me dá licença.
- Por que eu haveria de dar?
- Ora, como por quê? Eu cheguei primeiro.
- Não, nada disso. Entramos juntos.
- Tudo bem. Entramos juntos. Mas acontece que eu sou mais velho, logo mereço o assento.
- Quem lhe garante?
- É. Realmente o respeitoso cidadão aparenta uma idade muito mais avançada que a minha.
Os papéis se inverteram. O que era disputa por sentar na cadeira, tornou-se contenda para ver quem não se sentaria.
- Que abuso! Se for assim, o ilustríssimo pode sentar-se. Fique à vontade. Não vou roubar o lugar de um ancião. Quero garantir o meu cantinho lá no céu.
- O senhor deve estar brincando! Com esta cara de tuberculoso reumático?! Quem poderia negar-lhe um favor? Sente-se.
Neste meio tempo, a atenção dos passageiros já estava unicamente voltada para a discussão entre os velhos. E como o povo gosta de um bate boca! Fora a torrente de adjetivos dispensados a um, ao outro, apenas o som do motor era ouvido. Ninguém nem piscava os olhos, com receio de perder algum lance da discussão que se prolongava. As gentilezas haviam ficado na parada anterior: os dois idosos resolveram sair no tapa.
Um malandro que estava no banco de trás do ônibus começou a correr uma aposta entre os passageiros do lotação.
- Quem aposta no senhor de camisa amarela?
- Eu fico com o de camisa estampada!
As apostas estavam correndo soltas. O malandro já havia faturado o suficiente por uma semana de golpes.
Uma das senhoras presentes resolveu pedir a intervenção de alguém da platéia. O trocador resolveu atendê-la, mas levou um safanão que o pôs de volta em seu lugar. Não deixou barato. Deu de troco uma palmada na careca do senhor que o empurrou, em seguida, reservando-se ao seu assento, a fim de conservar os poucos dentes que ainda lhe restavam na boca.
Os digníssimos senhores se atracavam como dois moleques, quando uma freada brusca os separou.
- Chega! O meu ônibus não é picadeiro!
As vaias começaram e irritaram ainda mais o motorista que largara o seu posto para intervir na baderna que ocorria.
- Prestem atenção. Bastante atenção. Enquanto a polícia não chegar eu não toco este carro. Vocês podem tratar de se calar. Não aceito molecagem, não. E tem mais: quem tiver algum problema, pode vir falar comigo aqui agora.
O motorista pôs moral nos passageiros. Não houve um suspiro sequer. Também, com aquela cara de açougueiro furioso, ninguém se engraçaria com o condutor.
No meio do lotação, uma voz arriscou-se (era o malandro tentando sair fora dos apostadores):
- Ô motô! Vê se libera a gente. Não tenho nada a ver com isso daí.
Com os olhos o motorista respondeu o passageiro; foi o bastante para que entendesse o recado.
Pouco tempo decorreu até que os militares chegassem. Ninguém suportava mais o calor. E os policiais não entendiam como o motorista conseguiu impor tamanho respeito (ou medo) nos mais de quarenta usuários que lotavam o interior do transporte coletivo. Abriram o bloco de ocorrência, apuraram os fatos, tomaram depoimentos. O trocador que se reservara até então, tornou a se manifestar.
- Aqui!?
- O que foi? - falou o polícia.
- Ô amizade... O calor está demais. Os dois velhos estão passando mal. Um aqui já apagou!
O cabo que conduzia a apuração dos fatos, acostumado a só obedecer ordens, sem ver o seu superior por perto, resolveu pedir sugestões aos passageiros. Não houve resposta lógica que saísse das bocas. As reclamações começaram. Os desagrados crescendo, viraram gritaria e confusão de novo.
O policial superior, imponentemente como um pavão, entrou no ônibus e o silêncio restabeleceu-se. O cabo, aliviado, dirigiu-se ao seu salvador, relatando o ocorrido.
- Tenente, os dois elementos que iniciaram a balbúrdia encontram-se em estado de alerta. Um, aliás, está desacordado. Qual o parecer do senhor?
O tenente, resoluto, respondeu utilizando toda a sua autoridade, estratégia e tática para lidar com manifestações e arruaças:
- Sugiro que chamem uma ambulância!
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