MEMORIES
Mariazinha Cremasco

My days are just and endless stream of emptiness to me
Filled only by the fleeting moments of her memories

(Sweet memories - Ray Charles)

 

Sábado de pálido sol. Num ímpeto, os filhos decidiram levar a velha mulher a passear.

Há dois anos mantinha-se dentro de casa, com suas lembranças.

Não sabia o que acontecia consigo. De repente, ela, tão alegre e extrovertida, voltou-se para dentro de si, e nada mais a alegrava.

Não se lembrava ao menos do motivo que a fizera mudar assim, do dia para a noite. Escolhera a tristeza, escolhera a solidão. Lia, lia compulsivamente.

Nesse dia, foi interrompida, enquanto lia Neruda. Os filhos, cheios de boas intenções e carinho queriam levá-la a passear.

Num primeiro momento, relutou. Não queria ir de forma alguma. Mas sucumbiu, quando notou que eles estavam absolutamente convictos que a levariam e pronto.

Arrumou-se mal e sem a menor vontade, olhou com tristeza para o seu "Neruda", presente de um antigo amor, há tantos anos. Naquele momento, tudo o que não queria era separar-se do livro.

Mas foi.

Não tinha idéia do quanto e como envelhecera. Sabia que envelhecera vinte, talvez trinta anos, nos últimos dois.

Não era doença degenerativa. Era tristeza, diziam os médicos psiquiatras. E ela jogava todos os comprimidos receitados fora. Recusava-se a tomá-los. Que viesse a depressão, a angústia, a morte.

Que a deixassem com suas lembranças, suas tristezas. Por que não a deixavam em paz? Ela só queria ler e pensar. Já tinha feito sua parte nessa vida.

Chegando ao local escolhido por eles, deu-se conta de que era um lindo lugar. Já tinha estado ali, há alguns anos. Lembranças. Os filhos estressados, estacionaram o carro, pegaram-na cada um por um braço, e mostravam as belezas do lugar, usando uma maneira irritante de descrever as coisas, que ela detestava.

-Mamãe, olhe só que gracinha de ruazinha. Quer ver aquela florzinha? Veja que belezinha de cafeteria. Esse lugar não é lindinho, mamãe?

Sim, o lugar era o máximo. Lindo, romântico, e ela com suas manias, sentia os cheiros dos anos passados, quando lá estivera com um de seus amores. Fora uma mulher de muitos e intensos amores, não deixando nunca de amar a cada um deles.

Foi ficando triste, enquanto caminhavam até o restaurante escolhido pelos filhos. Memórias.

Não. Não era possível. O restaurante era o mesmo em que ela almoçara com o maior de seus amores, há muito tempo atrás. Não podia ser. Por que faziam isso com ela? Queria ter ficado em casa. Queria as lembranças, mas as queria de longe.

Entraram e quando viu o homem , mesmo de costas, teve a certeza de que era ele. Ele. No mesmo dia, na mesma hora, no mesmo local onde tanto se olharam, tanto se amaram. Onde foram felizes.

Como a vida, lhe pregava uma peça desse tamanho?

Sentou-se à mesa, ainda sem ver o rosto do homem, mas com a mesma certeza. Ela sentia. Ela sabia.

Em determinado momento, ele se levantou, dirigiu-se ao toalete, acompanhado de um jovem, provavelmente seu neto. Olhou-a e pareceu não reconhecê-la. Curvado pelo o peso dos anos. (era dez anos mais velho que ela) Engraçado como, na sua insanidade, lembrava-se de todos os detalhes de cada amor que tivera. E esse tinha sido o maior de todos.

Seus olhos estavam de um verde ainda mais intenso, o rosto emoldurado por cabelos brancos. Continuava a ser um homem bonito. E ela? Como estaria? Largada, desleixada, abandonada por si mesma? Conservaria ainda algum traço de beleza? Não importava. Nada queria mais da vida. Desistira de viver há dois anos.

Preferia morrer a ser vista por ele. Menos mal que não a reconhecera.

Os filhos, alegres, mostravam, plantas, quadros, antiguidades do magnífico restaurante, a falar irritantemente no diminutivo, quando uma música começou a tocar. Não era possível. Era a música deles.

Olívia sentiu uma pontada horrível no peito. Não teve tempo de ser acudida. Morreu ali, com o maior de seus amores a menos de trinta metros, ao som da música preferida dos dois, no lugar em que fora mais feliz, numa torrente de emoções, num pálido sábado de sol.


 

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