JACK, DE JOAQUIM
Luís Valise

 
 

Dentro da boca a língua parecia um torresmo coberto de asfalto. Camadas superpostas de álcool e nicotina tornavam-na tão inútil para o paladar quanto a casca de um jabuti. Rodou os olhos empapuçados em busca do garçon, que afinal estava parado a menos de três metros, consultando o relógio com impaciência. Era o último cliente, as portas de ferro já estavam baixadas até a metade; um faxineiro começava a lavar o salão do inferninho de terceira. Tomado por súbita consciência cívica, sentiu vergonha por estar empatando o pobre homem. Pediu a última:

- One for the road!

O garçon tentava entender do que se tratava. Jack encurtou o caminho:

- A saideira.

A conta veio junto com a bebida. Preencheu o cheque com letra bêbada, torta, amassada. Tomou o último falsificado sem pressa, a solidão era um perigo a ser evitado. Jogou o cigarro no chão, amassou a bituca com o pé, e deixou uns trocados pro da faxina. Na rua, atrás de qualquer sombra, a saudade preparava o bote.

Sabia que deixara o carro nas redondezas, mas onde? Andava junto à parede, com passos imprecisos. O barulho de uma freada entrou em seus ouvidos como um gato assustado. Ao abrigo de uma árvore abriu a braguilha, e despejou uma torrente ácida, amarela e quente. Sentiu o pau desanimado como um náufrago boiando no escuro. Início da madrugada. Se telefonasse ela o perdoaria por estar bêbado? Sabia o número de cor, mas buscou seu nome na agenda do celular só para vê-lo escrito no pequeno visor iluminado. A voz dela, saindo de um pesadelo ansioso:

- Alô?

- Sou eu.

- Eu sei que é você. Sempre é você. Boa-noite, e adeus.

- Fala mais comigo.

- ...

- Posso ir aí?

- Não!

- Preciso falar com você.

- Não!

- Você não vai me perdoar?

- Não!

- Eu ainda te amo.

- Problema teu!

- Posso ir aí?

- Não!

- Só um pouquinho...

- Não!

- Eu te amo.

- Eu quero dormir!

- Então deixa.

- Nunca!

- Nunca?

- Nunca!

- Tô entrando no carro. Logo eu chego.

- Não venha, Jack! Não vou abrir a porta!

- Não posso dirigir falando, vou desligar.

A rua estava deserta, as janelas escuras. Deu um toque curto na buzina. Nada. Dois toques curtos. Nada. Um buzinaço. Algumas janelas se iluminaram. Uma se abriu, voz de homem irritado:

- Olha o silêncio aí, palhaço!

Ia buzinar outra vez, quando a janela dela se abriu:

- Sobe!

Ela estava no quarto, porta fechada. Tirou os sapatos. Foi até a cozinha. Abriu a geladeira, viu latas de cerveja. Serviu-se de uma dose de Jack Daniels. Puro. Acendeu um cigarro. Tossiu com violência, sentiu falta de ar, os olhos cheios d’água. Apagou o cigarro, jogou a bebida na pia, soltou a gravata.

Entrou no quarto escuro, deixou a roupa cair no chão, deitou-se de cuecas. Ela dormia com uma camiseta sem mangas, cavada, os seios pequenos brotando como luas de cetim. Chegou o rosto perto do dela:

- Obrigado, amorzinho. Tava morrendo de saudade.

- Sai pra lá, teu bafo tá horrível.

- O uísque era falsificado.

- Você é falsificado.

- Mas sou todo teu.

- Infelizmente.

- Repete.

- Infelizmente.

Saiu da cama e vestiu-se no escuro. Pôs as meias do avesso, abotoou a camisa na casa errada, e já estava na rua quando se lembrou que esquecera a gravata. Voltou, tocou a campainha, ela abriu a porta; estava triste. Ele desafiou:

- Repete.

Ela olhou o homem, o rosto escuro da barba crescida, os olhos vermelhos de ver pra dentro, a camisa meio fora das calças. Recuou um passo:

- Entra, Jack.

- Repete.

- Entra, amor.

Quando a luz do dia tentava espiar pelas frestas da veneziana, Jack soltou-se do abraço da mulher sem acordá-la, beijou seu rosto sereno e levantou. Recolheu a roupa largada no chão e foi vestir-se na sala. Saiu sem fazer barulho.

Dirigia de volta para casa, coração em calma, amor florescendo nos olhos de amanhecer. Sentiu um repuxão no ombro. Ajeitou-se no assento. Outro repuxão, mais forte, e a voz que vinha de longe:

- Acorda, Joaquim! Joaquim, acorda, homem!

Entreabriu os olhos pesados de sonhos. A televisão ligada em chuviscos. A patroa, paciente de tantos anos, apertava seu ombro, e dizia baixinho:

- Vem, anda, vem dormir na cama! Já está por raiar o dia, logo tens que abrir a padaria. Vem descansar.

Foi.

Horas depois, atrás do balcão, atendia os primeiros fregueses da manhã, e lembrava do sonho louco. Sentia na boca o gosto amargo dos cigarros nunca fumados. Sonho tão real, a azeitar a vida tão igual...

Abria a gaveta da registradora automaticamente, fazia o troco por costume, o pensamento longe. Num momento de folga, sem ninguém por perto, correu a mão sob o balcão, até encontrar o encaixe secreto. Dele tirou uma foto. Olhou-a por alguns instantes. Imaginou-a vestindo a camiseta cavada. No verso, a dedicatória: “Para o sempre Jack.” Tornou a esconder a foto. Sorriu para o cliente que chegava. Não precisava mais que isso.

 
 

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