TERIA CLARA PREVARICADO?
Leila de Barros

Uma vez eu assisti um filme do tipo “noir” com a inesquecível Rita Hawyort e eu acho que o galã era o Kirk Douglas. Em um dos diálogos, não me recordo qual dos dois mencionou uma frase meio fatídica que me marcou muito:
“E os deuses para castigá-los, atenderam os seus pedidos”.
Bem, como eu não acredito em castigos, nem divinos e nem mundanos, mudei a frase para meu próprio uso e ela ficou assim:
“E os deuses para apaziguá-los e ensiná-los, deixou que seus pedidos fossem atendidos”.
E com base nessa frase eu me pergunto, teria Clara prevaricado?
Clara e Pietro se conheceram quando ela estava se separando de um antigo e sofrido amor e ele cicatrizando-se lentamente de um amor que ficara na Tailândia. Ambos desejavam muito encontrar um novo amor e assim pediram com muito ardor.
Os deuses anotaram o pedido...
Ela, brasileira, escritora e jornalista, personalidade forte, mas de raízes mineiras, quatrocentonas. Ele, belga, bailarino do corpo municipal de balé de Bruxelas, cidadão do mundo, sem nenhuma tradição, nem limitação.
Clara havia ido a Bélgica para fazer uma reportagem sobre a turnê de primavera do referido balé.
Assim que os olhos verdes de Clara cruzaram com o olhar de ébano de Pietro, o Olimpo trovejou, bradou e surgiram fortes rajadas de vento!
Foi uma torrente de paixão! Um maremoto, uma revoada de canários belgas. Mesmo sendo um desatino, um feixe de controvérsias e arcanos do destino, mesmo sem falarem o mesmo idioma, muitos lençóis de cetim arderam ao crepitar da lareira do hotel em que se hospedaram.
Clara “arrastava” um francês ginasiano e Pietro declamava em alemão.
Ela era filha de militar, ele artista desprendido do trapézio, filho de artistas circenses. Ela trazia a alma fina como papiros chineses, mas a determinação do aço mineiro. Ele seduzia com a leveza de seus pás-de-deux, mas trazia a alma trancada a sete chaves. Clara buscava o amor masculino e maduro, Pietro navegava entre o ying e o yang, nunca fez questão de definir-se, buscava o hedonismo e o lúdico.
Mas, ainda assim, eles se amaram à primeira vista, à segunda e à terceira. O Olimpo visitava Clara em sonhos e ela cismava entre um ato e outro, sem conseguir pisar na realidade de vidro. Pietro queria dançar, desgastar suas sapatilhas em mil portos. Clara desejava fincar âncora em um só porto. Clara era mulher e buscava o amor de um homem, a cumplicidade, Pietro não se importava com sua definição sexual, queria as viagens e a arte, ainda que com a solidão opcional.
Pietro e Clara tornaram-se espelhos, não se temiam, amavam-se, mas seus olhos miravam universos opostos.
Clara queria abrigo no dorso de Pietro. Pietro queria também se abrigar em algum dorso, feminino ou não.
O Olimpo resolveu dar tempo ao tempo e decidiu por eles...
Pietro partiu para mais uma turnê. Clara foi fazer a cobertura jornalística das olimpíadas de 2004.


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