O POLICIAL
Juraci

Não fora nada planejado. Ficar assim frente a frente com tanta serenidade, só mesmo certeza dos fatos. Todos achavam aquele policial um monstro humano, se é que existe monstro humano. Parecia não ouvir os apelos do público para que o linchasse. Não fosse dado a ele nem o direito de piscar. Cometera um crime, sabia disso. Cruel. O dia fica agitado, mais triste, vento mais forte. No tribunal, desfilam tristezas e pensamentos, como folhas soltas, sem rumo, nas calçadas revestidas de pó. Ali, quase sem escutar nada, a jovem menina, como uma flor pisoteada, lamenta baixinho para a mãe, sua sorte enovelada:
“Meus sonhos, ah, meus sonhos! Tristes noites invernais...” Chora baixinho... Olhar assustado, tanta gente reunida!... Divaga o olhar, observa as flores do jarro enferrujado, já murchas. Ela também está murcha. Uma senhora, vestida a rigor, faz a troca da água quente da jarra, por outra gelada. Leva também as flores. Queria ir junto. O ambiente se torna pesado, tenso. O promotor faz perguntas ao homem gordo, de cabelos e bigodes bem aparados. Charmoso até. Homem pago para cuidar da segurança da população.
Silêncio na platéia a esperar pelo depoimento. Ele se recusa a falar sobre o assunto. Pensou ser só dele, nunca viria a público.
Gritos, histeria da platéia... Torrente de palavras carregadas de ódio, de desolação.
Mediante a insistência da autoridade, ele friamente resolve reprisar tudo:
“Era inverno. O frio me trazia necessidade de companhia. Me sentia solitário. Eu e meu copo de cerveja. Ninguém em casa. Só minha enteada, a Ritinha. Pequenina e raquítica. Gostava de brincar debaixo da mangueira do quintal. Sempre brincava ali, sozinha. Eu não gostava de outras crianças em casa. Ela queria brincar com as meninas da nossa rua. Não permitia para protegê-la. Há muitos malandros em beiradas de brejo, eu lhe dizia...
Ritinha foi crescendo e também buscando, cada vez mais, a minha companhia. Pavor das mínimas coisas. Sentia-se protegida por mim... – falava quase pensando. Muitas das vezes se agarrava ao meu pescoço, aninhava no meu colo. Numa noite chuvosa, a porta do meu quarto se abriu e ela pediu para dormir comigo. Tremia com medo e frio. Medo de quem já morreu, da escuridão, de trovão. Noite longa, a fazia ver fantasmas e buscava abrigo no meu quarto. Nossa casa, ao fundo, faz limite com um terreno alagado e quando começava a orquestra dos sapos e grilos, ela corria para mim em busca de proteção.
A mãe, enfermeira municipal, nunca estava por perto, sempre nos hospitais ou buscando conhecimentos nas faculdades modulares, em cidades distantes. Precisava aperfeiçoar-se para continuar no emprego. Outras vezes em tratamentos psiquiátricos para se livrar de intermináveis noites depressivas. Rara a sua lucidez.
O tempo foi passando e meus pensamentos começaram a içar velas. Vergonhosamente passei a desejar a Ritinha. Por mais que eu tentasse, não conseguia tirar a menina da cabeça. Noites altas, eu acordava com ela atracada em mim. Aquela ingenuidade aguçava meus nervos, meus desejos. Perdia o sono e o trabalho... Passei a não querer mais sair de casa. Procurava compensar as faltas que a mãe fazia. Presenteava-a com bonecas, vestidos novos, sandalhinhas e cds da Xuxa, sanduíches coloridos e outras coisas que ela desejasse. Tentei domar meus sentimentos, mas foi maior o meu desejo.
Comecei a sentir ciúmes até das tarefas escolares. Foi numa dessas tarefas que dei a minha primeira investida. Eu a ensinava fazer o dever. Fui apagar o exercício errado e me aproximei demais do seu pescoço. Apoiei o queixo no seu ombro, alisei com minha barba por fazer, o pescoço ingênuo. Ela sentiu cosquinha e sorriu para mim.
“Lincha-o!” Grita o público enraivecido.
O juiz, pedindo silêncio, manda-o continuar.
- Noites passei sem dormir, tentando controlar meu corpo que a sentir vigorosas sensações, ansiava pelo impossível, a me tirar do normal, num êxtase descontrolado. Um desejo quase que violento me trazia cheiro de vida nova, gozo nunca apreciado. E ela estava ali, senhor juiz, debaixo dos meus lençóis...
Agora, depois de sete anos, para reparar o meu erro, quero que o senhor ordene o nosso casamento.

 

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